domingo, 4 de dezembro de 2011

A passeata, a lista e o graveto seco


Era uma vez uma cidadezinha onde os moradores sabiam por experiência própria que a um tempo de trevas sucede um tempo de luz, de clara serenidade ou de calma inquietante. Esta é a eterna lei. Essa é a certeza que provoca a melancolia nos homens.
Algures... a sombra poderia estar se movendo, tentando libertar-se de anos de cativeiro, de insuportável estagnação, monstruosa e sedenta de sangue e dor. A essência do pior que poderia constituir o ser humano vicejaria.
Essa, em tempos passados, encontrou terreno fértil em Bernardo Badoo. Quieta e silenciosa, a vida parecia aguardar a destruição que ele deixava a cada passo. Badoo era uma sombra que emergia das sombras no total anonimato com uma força inacreditável.
Na cidadezinha, deram a atenção que costumavam dar à chegada de uma nova família de moradores: nem júbilo nem desprezo, apenas a mera curiosidade moveu os moradores. A família chegou composta pelos pais e duas filhas solteironas.
Os moradores não cogitaram pensar o motivo da mudança daquele que se dizia major reformado para um lugar tão pequeno, suficientemente, guarnecido apenas por meia dúzia de soldados. Também não desconfiaram que o tal major tomasse nota dos hábitos noturnos dos moradores da cidadezinha desde que se estabeleceu com a família na casa dos sete arcos.
Badoo queria saber a que horas jantavam, quanto tempo que ficavam à mesa e a demora da conversa logo após a janta. Segundo pensava aquele homem, essas eram horas cruciais, porque, de estômago cheio, as famílias conversavam sobre seus segredos e decidiam o rumo de suas vidinhas.
Pelas sombras das noites, o major deslizava sorrateiramente, encostando o ouvido às portas e janelas das casas. Badoo maldizia as grossas portas de madeira esculpidas em baixo relevo e se extasiava frente às portas finas e àquelas com frestas. Queria ver ou ouvir por trás de cada uma delas um antro, um covil, uma corja da pior espécie.
A ânsia de encontrar alguma coisa, descobrir um segredo, um pecado, uma culpa lhe deixava a respiração ofegante e a garganta seca, obrigando-o a tirar do bolso uma garrafa de metal de tempos em tempos. Dela, arrancava com os dentes a rolha presa por um barbante, levava o gargalo à boca e sorvia seu líquido amargo com vagar. Sentia os pêlos de seus braços e nuca se eriçarem, sacudia-se como um bicho de pêlos molhados.
Enquanto espreitava os moradores, arquitetava as denúncias que faria depois de dar por acabada a diligência. Esfregava as mãos e babava de prazer nos becos escuros ao imaginar os castigos que ele mesmo infringiria aos culpados. Principalmente, aos culpados pelo declínio do patriotismo.
O destino, no entanto, era como o vento que fazia voltas na casa dos sete arcos, farfalhando as folhas, entrando pelas janelas, roçando às paredes e entortando os quadros. O major, sem dar importância ao vento do destino, enchia cadernos anotando segredos e culpas dos moradores.
Esgueirando-se rente às casas - ora volteava sobre si mesmo, ora retomava seus passos, ora seguia em frente - era como um dançarino solitário que ensaiasse os mesmos passos noite após noite. Como ou quando passou a ser seguido por bugios e a ter seus gestos imitados por eles, nunca soube nem viu. Aos bugios que faziam das praças da cidade seu habitat, outros se ajuntaram, vindos das matas próximas. A escuridão da noite escondia essa passeata do absurdo balizada por Badoo.
Badoo só não ignorava uma dor profunda no dedo indicador da mão direita. Ele passou a dormir cada vez menos; durante o dia, retomava seus passos. A partir das anotações feitas, elegeu uma lista de nomes dos moradores, ladeados pelo relato de todos os segredos e culpas. Esta seria entregue no comando geral na cidade vizinha.
Major Badoo sonhava de olhos abertos com as palmas para o discurso que proferiria frente aos comandantes. De seus olhinhos miúdos e estreitos escorria pequenas gotículas de suor ao se imaginar condecorado com medalha de mérito pelos serviços prestados à pátria.
Enfim, pensava ele, teria seu objetivo alcançado, depois de toda a incompreensão, de toda falta de agradecimento pelo trabalho que realizara nos subsolos da pátria: anos passados em câmaras escuras e mal cheirosas a sangue, urina, fezes, maldade e medo, obrigando homens e mulheres a confessarem seus crimes.
Os rostos feitos estampas do terror jamais perturbaram seu sono. Nada sentia. Jamais ofereceu de si a compaixão. Zombava do medo que seus confrades tinham das torturas de uma posteridade infernal.
– As mortes eram somente um mal necessário, os ossos do ofício que me delegaram – balbuciava e concluía cuspindo: – Mortes sem glória!
Enquanto Badoo sucumbia a sua atração patológica pelo mal, os moradores da cidadezinha, alheios à hostilidade da insana criatura, tentavam entender o motivo de serem invadidos por um expressivo número de bugios à noite. A maioria concordava que o fato inusitado estaria anunciando uma seca devastadora; embora, alguns moradores chamassem atenção para o verde viçoso que matizava as matas dos arredores. Seria, disseram então, outro desastre natural anunciado, mas não entendido.
O que não esperaram foi que o desastre tomasse a forma de uma lista de nomes. Oito meses e dezenove dias depois da mudança do dito major para a cidadezinha, os moradores souberam de uma lista onde constavam dois mil quinhentos e cinco nomes, independentemente, de credo, posses, parentesco e importância.
Os cidadãos cujos nomes faziam parte da tal lista, além de serem culpados pelo declínio do patriotismo, eram acusados de roubo, adultério, abortos, incestos e ateísmo. A lista permaneceu em segredo guardada a sete chaves no destacamento. Por isso mesmo uma cópia correu de mão em mão pela cidade. Curiosamente, a ordem dos nomes correspondia à disposição das casas nas ruas.
A seguir, as famílias que não faziam parte da lista passaram a ser alvo de desagravo. Chegaram mesmo a se refugiar por dias em suas casas. Uma nova ordem reinou na cidadezinha. Cada vez que saíam furtivamente às ruas, os bugios não apenas roncavam, mas lhes jogavam fezes. Os moradores reagiram jogando água com creolina nos bugios. Longos conflitos se seguiram até os bugios perderem quase todo pêlo.
Deixando de lado os bugios, moradores listados e não-listados uniram-se para descobrir o infame acusador. Leram e releram a tal lista, uns apressadamente, outros com irritante vagar. Vasculharam ruas claras e iluminadas e becos escuros e limosos. A única casa livre da imundície dos bugios e com moradores isentos de agressão era a do major Badoo.
Concomitante a essa descoberta surpreendente, pois o major nem era da cidade, um estranho fato aconteceu: caturras invadiram a cidade aos bandos, arrasando o pomar da casa dos sete arcos; comendo as frutas, os brotos e as folhas; descascando o tronco e os galhos das árvores; bicando as quinas das janelas e portas.
Na cidadezinha, nem tudo era espanto e vergonha. Os moradores feridos e enxovalhados trataram as feridas pelo corpo e suplicaram pelas suas almas atônitas. Os bugios quase sem pelos sumiram nas matas. A água com sabão lavou as calçadas e as fachadas das casas, escorrendo pelo solo encheu de espumas o rio já combalido, provocando uma mortandade de peixes.
Os moradores se dispuseram a impedir que Badoo viesse a imergir a cidade em trevas novamente, a dar vazão a velhas e novas desavenças por conta de segredos já sepultados no esquecimento. Procuraram então saber as sem-razões do major para se imiscuir em seus segredos.
Aqueles escolhidos para a tarefa encontraram-no em casa, sentado à cabeceira de uma mesa longa coberta com uma toalha alvíssima engomada de tal maneira que era inútil procurar uma mancha ou uma ruga no tecido. Estava só, a família abandonou a cidade com o ataque das caturras. A delegação de moradores também não esquentou a cadeira.
– Não vale à pena, o homem é uma sombra, de perto nem parece humano – disseram à saída.
Nos instantes em que ficaram frente a frente com o major não acreditaram no que seus olhos viram. O dedo indicador da mão direita era enegrecido e seco como um graveto. A negritude alastrava-se em sulcos profundos pela mão e pulso acima, secando o caminho percorrido.
Anos mais tarde, a velha senhora que contou essa história para a neta disse que, naquela mesma noite, sonhara com um barco com velas rotas vagando a deriva no rio. Nele, um bugio negro postava-se a frente de incontáveis portas usando um graveto seco como chave.

Zélia Viana Paim
Imagem Bugios - São Francisco de Assis (RS-Brasil) 

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Flor de Defunto

Jasmim era a sua flor preferida, pelo perfume inebriante, pela alvura e pela textura das pétalas. Tal fascínio não se resumia ao desejo de olhar, de cheirar e de tocar, Maria precisava também satisfazer o desejo de comê-las. Ela não lembrava quando começou a comer as pétalas do pé de jasmim que nasceu e cresceu sem que a mãe e a avó se dessem conta no canto esquerdo da parte de trás da casa.
Certamente, foi muito antes de saber sobre o tio da avó. Antes disso, não entendia o desatino dela, fazendo-a cuspir fora o que restava das pétalas mastigadas gritando:
– Jasmim é flor de defunto, guria – enquanto lavava sua boca com água benta de uma garrafa que mantinha na geladeira para ocasiões que exigiam uma ação divina imediata.
Com o passar do tempo, Maria passou a duvidar que jasmim fosse flor de defunto, embora notasse ao toque certa semelhança da pétala com pele de gente viva - ao arrancar uma pétala da flor, era como se cortasse um pedaço da pele de alguém. Eram pétalas carnudas e sedosas não eram finas como as pétalas de outras flores. E, estranhamente, nunca avistou um jasmim sequer no cemitério.
Quando ia com avó e a mãe lavar o túmulo dos antepassados e trocar as flores secas por outras recém colhidas, rosas, camélias, cravos, palmas ou copos-de-leite, nunca levavam jasmins. A avó e a mãe faziam questão da troca pelas flores frescas de tempos em tempos. As flores eram elementos essenciais, porque testemunhariam o respeito devido à memória dos seus mortos. A deposição das flores era o momento nuclear do rito de recordação e o gesto explícito da visita ao cemitério.
Nessas visitas, as duas recordavam-lhe segredos de vida e de morte que rondavam sua gente. Um deles, em especial, dizia respeito a um tio da avó, morto por causa de um insano amor que lhe despedaçou o coração. Era uma história incansavelmente contada.
Esse tio havia sido um homem de vida conturbada. Na juventude matara dois homens, um em legítima defesa, outro para defender o irmão pai de família. Como os mortos eram forasteiros, ninguém denunciou o acontecido, ninguém reclamou ou velou seus corpos. A autoridade municipal, cada uma ao seu tempo, deixou por isso mesmo, enterrando os corpos na ala dos indigentes sem nome, sem passado, sem história.
O tio da avó casou homem já maduro para aqueles tempos, quando ninguém mais esperava, com uma mulher muito jovem. Arrastou a mulher, franzina e pálida como um lírio, para morar em um fundo de campo, longe de tudo e de todos, onde a retidão da estrada de ferro fazia a curva. Lá, no distante e ermo longe, o ciúme do nada ou de fantasmas tomou conta dos dias e das noites do pobre homem que berrava impropérios às sombras e ameaças aos troncos de árvores.
Santinha, a mulher objeto do insano ciúme, sofreu por sentir que seria impossível viver um amor assim. Aproveitando o sono de quase morte do marido cansado dos dias e noites de vigília, a mulher fugiu, sumindo no mundo seguindo a retidão da estrada. Nunca mais se ouviu falar dela.
Três dias depois o tio chegou à cidade no rastro da mulher. Alucinado vagou pelas ruas sem paradeiro, recusando abrigo e ajuda dos parentes e dos poucos amigos. Num sofrimento sem fim, perseguiu a morte arrumando arruaças nos bares e becos por tudo ou quase nada.
Sete dias contados depois da partida de Santinha, o corpo sem vida com o coração despedaçado por uma bala de arma de caça foi encontrado ao relento, caído num terreno baldio em noite de trovões e tempestade com os bolsos repletos de flores de jasmim e a boca de pétalas mastigadas.
Maria, quando menina, não negava o fascínio pela história daquele parente distante, acentuado pela coincidência das flores de jasmim e, também, pela imagem do homem na lápide que não condizia com a vida alucinada do tio. Era uma fotografia datada do dia do casamento dele e mostrava um belo homem, os cabelos eram loiros e os olhos claros quase transparentes como os dos santos. Adivinhava-se a boca bem feita e carnuda sob um bigode farto de pontas reviradas para cima. O bigode emprestava ao rosto um ar quase jovial e irreverente, mas Maria, desde menina, preferia a beatitude incoerente do olhar.

Zélia Viana Paim

sábado, 29 de outubro de 2011

As Pétalas Rosa Antigo




A manhã estava muito clara, e o céu azul desbotado depois de muita chuva parecia ter sido lavado repetidas vezes. Ela, no entanto, não reparou o dia que parecia convalescente. Não dormira quase nada à noite, uns poucos minutos talvez.
Não havia um fato recente para a inesperada insônia que deixou as olheiras roxas acentuando ainda mais a cor dos olhos. O espelho do banheiro mostrou um rosto sem beleza alguma, a não ser a cor azul violeta dos olhos, quase como os daquela atriz, motivo de orgulho e louvor. Enquanto olhava nos olhos e escovava os dentes, ela pensou que não importava o motivo da insônia, porque teria o dia para se recuperar da noite indormida. A primeira providência seria fazer um café bem reforçado.
Ao se dirigir à cozinha, contando mentalmente os passos que a separavam do quarto, uma cena brincou com suas lembranças. As rosas colhidas antes da chuva e cuidadosamente colocadas no vaso ao centro da mesa da sala estavam todas despetaladas. As hastes exibiam o receptáculo e as sépalas, as pétalas rosa antigo rodeavam o pé do vaso verde-água. Uma desolada e definitiva beleza já apreciada antes.
Sem pensar, imediatamente, ela vasculhou a gaveta da cômoda encostada à parede até encontrar o macio objeto de sua busca. De posse do lenço branco de seda desdobrou-o e tentou desfazer delicadamente as marcas das dobras com a ponta dos dedos estendendo-o na mesa. Começou então a separar e contar as pétalas, como havia feito tantas vezes quando era ainda uma adolescente e depois uma mulher casada e que quase nunca mais fizera desde então.
Ela pensou que tivesse esquecido, mas logo os dedos e os lábios refizeram os detalhes do ritual que inventara na solidão há anos. A seleção das pétalas perfeitas seguia critérios que não poderiam ser descritos em palavras. O contato ínfimo dos dedos com a maciez da pétala, como se os sulcos que constituíam a digital fossem delicada ventosa que a sustentassem sem deixar mácula, obedeciam a um ritmo lento e hipnótico. O movimento lhe trouxe à memória fatos, como partes de um rosário de lembranças.
Sobreveio a sensação de calma e de atenção concentrada que desempenhava um papel importante para falar com as sombras do passado. Ah! as sombras... Só as sombras sabiam que quase tudo nela era falso. Ninguém poderia imaginar, ela pareceria tão gentil ostentando uma sabedoria tão triste em seus olhos. Mas as sombras sabiam. Todas as suas ações escondiam uma ameaça e cada sorriso era uma máscara de fingimento. Todos, durante toda a sua vida, acreditaram que ela era inofensiva.
Ela havia enganado muito bem todos os professores, os pais, os irmãos, os colegas, os amigos, os vizinhos, ele e outros que algum dia demonstraram algum interesse por ela. Ela havia se preparado para ser assim. Seu pensamento mais frequente era “posso cuidar muito bem de você”. Não havia para ela nenhum perigo em ser enganadora. Ou remorso.
Àquela altura, em meio ao ritual, lembrou o momento exato em que se viu cansada de enganar. Tornara-se uma fugitiva e se escondera neste lugar remoto longe dele e de todos que pertenceram ao passado. Sabia que ele e os outros a odiariam e não teriam misericórdia se por acaso tivessem que lhe julgar culpada de falsidade. Então, ela se inclinou para frente, falando em tom baixo e cauteloso.
— Por que estou lembrando esse momento? — e continuou,... dirigindo-se às sombras no singular — Posso confiar em ti? Como se já não soubesses? Por que explicar a ti me dá uma escolha? Tu deves saber tudo. Ele me despreza, e eu... me arrependo.
Ela estava jogando. Enganando. Mentindo às sombras. Ela enganaria mesmo se isso tornasse as coisas piores para si mesma. Simplesmente gostava demais de enganar para parar. A verdade era uma. Fugiu porque cansou dele. Cansou que acreditasse nela, mesmo quase oferecendo-lhe de bandeja às provas de que era enganadora. Cansou de alimentá-lo com esperança e desespero. Cansou de dividir a amargura dos dias partidos um a um.
Qualquer coisa que dissesse seria mentira. Jurava amá-lo. Jurava odiá-lo. Pedia que a perdoasse pelo desamor enquanto pensava “que essa mentira pelo menos o console um pouco antes de se tornar fonte de novos sofrimentos”. Sabia, no entanto, que estava mentindo para si mesma. Nesses momentos, o que ela queria mesmo era um minuto livre dele. Ele era um egoísta no seu amor por ela. Enganava-se pensando que bastava desejar o amor dela, para que ela o desse. Ela desejava um nada para ele. Voltando a falar às sombras sussurrou:
– Tu me decifras qual esfinge! Mas te enganas se pensas que eu quero esquecer. Quero levar comigo o minuto de abismo do primeiro passo para o longe. O momento de recusar a força de uma vida moldada. Recusar a predestinação de ser igual a elas. Recusar tudo, tanto a inocência quanto o pecado. Portanto, não me julgues apenas por recusar trazer nos olhos, além da minhas, as lágrimas de outro.
Então com um sorriso que parecia triste, um dar de ombros e um meneio de cabeça que desmentiam a tristeza, como se cumprimentasse um adversário inteligente que tivesse feito um bom movimento no tabuleiro de xadrez, ela recolheu as pétalas juntando as pontas do lenço. Abriu a janela e soltou as pétalas ao vento e as sombras... ao tempo.

Zélia Viana Paim
Imagem/Foto de Zélia Viana Paim

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Enquanto a Terra gira


As nuvens pinceladas no horizonte pareciam brasas incandescentes, e o sol, um ponto vermelho como sangue. A luz do entardecer acentuava o brilho dos olhos escuros e mansos de Lúcia. Por trás da mansidão do olhar, perpassava um sorriso irônico, mas essa face velada era um vislumbre apenas para ela na sua imagem refletida no espelho. Lúcia morava com Pedro na mesma casa, que fora de sua bisavó, erguida no meio do pampa.
Era uma casa de dois andares, com duas torres separadas por uma saleta forrada de prateleiras repletas de livros antigos e raros. O quarto dela ficava na torre norte, o lado iluminado, o dele ficava na torre sul, o lado sombrio. Lúcia quase não saía de casa, e Pedro vivia a vagar pelos campos de revolução, degola e morte.
Lúcia procurava não pensar no perigo dessas andanças. Aprendera que se rebelar contra a hora da morte era tarefa vã. Lera nos livros que as servas do Destino são incansáveis em fiar o fluxo da existência humana, em tecer o ritmo da criatura e marcar a hora da morte. O corte do fio da vida é parte do trabalho da serva, obedecendo a um capricho do seu senhor: o momento definitivo de se abandonar o corpo.
Agora a luminosidade alongava a sombra de tudo sobre terra, os caules e troncos das árvores mais próximas tinham um tom rosado. A noite logo cairia com um manto negro ao redor. O tempo fluía devagar como uma reza de beatas na saleta, onde Lúcia lia. Os olhos arderam, ela levantou-se e acendeu o lampião, procurando não pensar em Pedro andando sabe-se lá onde, à mercê de maragatos e ximangos.
Pedro e Lúcia eram os últimos que restavam da família. Eram da mesma idade, haviam sido criados juntos e, assim, viviam há mais de um par de décadas. Agora, as volúveis opiniões dos homens não os impressionavam mais. Concordavam que eram as forças impalpáveis do universo que os amedrontavam, moviam-nos como marionetes e se dedicavam a fazer deles os seres que eram.
Foi assim que, no tempo próprio em que cada espécie encontra um par, não encontraram ninguém, a não ser um ao outro. Sabiam também ter direito ao amor, à força universal da atração que justifica a união dos seres, engendrando as linhas de descendência que acabam por ligar a todos: os deuses, os homens e mesmo os deuses e homens. Eles seriam sempre únicos; pois, com os dois, toda a história dos seus encontrara o fim.
Sem pensar em Lúcia, Pedro chegou ao alto do cerro do qual se avistava o horizonte ao longe. Era um cerro de pedra de cume achatado no qual dormitavam lagoas eternas e cristalinas. A chegada foi um instante antes da hora em que o dia se transforma em noite, e todos os seres e as pedras perderam seus contornos próprios. Então, tudo se tornou uno.
Pedro era um duplo: carente e andarilho, herança da mãe; corajoso e esperto caçador, herança do pai, irmão de Lúcia. Há anos, desde o começo da revolução, passava os dias e parte da noite campeando, olhando aqui e ali, desconfiando de seus passos, vigiando seus flancos, esperando ser atacado a qualquer momento por homem ou sombra.
Ele desertara, por causa de Lúcia. Mas mesmo sem tomar parte nas batalhas, estava na guerra como todos. A morte rondava a pé e a cavalo pelos pagos. Lembrava a si mesmo disso, como se estivesse se desculpando pelo cheiro de sangue e de morte entranhado nas ventas. Vivia apartado dos homens, não tinha amigos nem inimigos. Não sabia o que procurava, não defendia um ideal, apenas desferia golpes ao acaso, ao léu, ao vento.
A revolução havia passado perto dali, onde ele vivia com Lúcia. Tudo que havia sido destruído seria, novamente, construído. Os bichos e os homens que sobreviveram voltariam a morar na antiga morada. Assim era a guerra, assim seria a paz, enquanto algures o mal não revivesse. O terror e a discórdia, o amor e a paz se alternavam sempre, às vezes, na mesma geração de homens.
No alto do cerro, Pedro sentia um torpor penetrar por seus poros e paralisar todos os seus músculos e nervos. Não se sentia mais vigiado, todas as preocupações abandonaram seu coração, a mente desanuviara-se, a vida ganhara esplendor. Pedro desejou ter, por um momento, o poder dos homens sábios ou santos para intervir de maneira decisiva nos acontecimentos do mundo. Mudar o seu destino ligado ao de Lúcia desde sempre, mudar a condição imposta para viver esse amor insano.
O latido de cães, ao longe, resgatou Pedro do torpor e do quase arrependimento. Abriu os olhos para a noite soturna. Toda terra ao redor, até onde seus olhos podiam ver ali do alto, estava tomada pela noite mais escura de sua existência. Somente nas partes baixas que formavam os pequenos vales onde corriam arroios e sangas pairava uma névoa esbranquiçada, cujos fios no topo das árvores se enrascavam como inimigos ou como amantes.
Pedro retomou seus passos por caminhos de breu. Os cães, que ouvira antes, anunciaram a sua chegada em casa. Ao aproximar-se de Lúcia, um novo estado de espírito se apoderou dele, sentia-se decidido e sereno. Sabia que Lúcia estava sentindo exatamente o mesmo.
Sabiam que nenhum dos dois mudaria depois de ter sentido na pele a carícia das mãos do outro. Aqueles seriam eles para o resto da vida. E assim, sem se perguntarem se outros amantes apaixonados antes deles teriam sentido um amor capaz de proporcionar tamanha infelicidade e prazer, ficaram deitados juntos. Enquanto a Terra gira.

Zélia Viana Paim
Imagem Terra_Gaia

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O Ensaio


Petrus encostou-se à parede de cristal no centésimo andar do prédio onde estavam instalados os laboratórios e alojamentos destinados aos cientistas da computação holográfica naquela região do país. Olhou ao longe, muito além dos limites murados da cidadela. Os campos em primeiro plano estavam cobertos de miúdas flores amarelas nascidas muito depois da grande seca. Depois dos campos, onde a vista quase não alcançava, nas fazendas comunitárias de criação de búfalos, os campos de pastagem irrigada eram muito verdes.
Ele era um belo homem, tinha cabelos e olhos negros e a pele muito branca. Vestia-se, invariavelmente, de preto, como a maioria dos homens de sua idade. Diferenciava-se deles pelos acessórios: usava uma fina corrente de prata, um fio quase imperceptível, da qual pendia um minúsculo medalhão esculpido caprichosamente com a figura de um dragão. No dedo médio da mão direita usava um anel também de prata com uma pedra de cor azul marinho encravada, cuja laboriosa lapidação oval atraía o olhar apesar de minúscula. As duas jóias eram símbolos da irmandade a qual pertencia.
Petrus pensou em Sophia, sua amada. Viveu com ela desde a adolescência até aqueles anos de incoerência e medo nas três últimas décadas. Um tempo que nomearam como ensaio do fim do mundo.
Primeiro veio a “era do transgênico”. Tempos difíceis, durante os quais, sementes transgênicas substituíram as orgânicas por toda a terra cultivável até se tornarem proibidas. Isso só aconteceu porque os mesmos laboratórios que as disseminaram extraíram e salvaguardaram a célula germinal dos alimentos orgânicos cultiváveis. Então, aos poucos, os transgênicos foram sendo consumidos por pragas ecológicas criadas por filiais clandestinas dos mesmos laboratórios. Os órgãos de Estado responsáveis pela transição não divulgaram que a mudança no consumo de alimentos transgênicos para alimentos orgânicos ocasionaria crises de abstinência nos mais jovens.
Sobreveio, então, a “era das nascentes” quando a água passou a ser considerada riqueza. Os aquíferos, reservatórios intocados no subsolo dos continentes, definiram um novo poder mundial. O país atingiu um novo patamar no ranking dos países ricos e pôde mapear seu território em busca de mais água potável. Assim, o governo marcou, cercou e guardou cada vertente ou nascente perene, para que o entorno delas permanecesse intocado em raio de quilômetros considerado seguro, apropriando-se de hectares de terra em benefício do Estado.
A última foi a década do “paraíso induzido”. Uma catástrofe planetária em ondas climáticas vindas do sul: primeiro foram chuvas torrenciais e granizos que inundaram e gelaram a terra; depois, secas intermináveis que desertificaram extensas áreas. Essa catástrofe climática foi desencadeada por uma sociedade internacional de cientistas do tempo que, num delírio de perfeição, tentou induzir um clima perfeito a partir de experiências realizadas em laboratórios sediados no pólo sul.
Foi no início dessa última década que uma lenda veio a público na rede mundial de computadores. A existência de uma chave de portal que daria acesso a um novo Éden. Sophia era um dos sujeitos empenhados nessa busca. Ela passou anos tentando decifrar a linguagem que a levaria às figuras, cuja disposição engendraria um signo que servia como chave do portal. Então, desapareceu numa madruga ainda escura e fria.
Petrus afastou-se da parede, estava exausto, os olhos ardiam, as mãos tremiam, era um misto de esperança e desespero. Há três meses, havia encontrado pistas na linguagem que Sophia usava no seu trabalho como designer de interface gráfica. Descobriu a linguagem cifrada, criada a partir da antiga linguagem fonética usada pelos internautas do início do século e figuras de cartas de um game dessa mesma época. Essa era uma linguagem cibernética criada pela irmandade, a qual agora Petrus pertencia. Nessa linguagem segredos eram revelados; preconizavam caminhos incomuns, embora, não afirmassem como já trilhados.
Petrus movimentou-se pela sala, parou no centro abrindo no espaço uma janela holográfica. Com gestos rápidos, nela abriu vários ambientes até chegar ao seu objetivo final. Um espaço dividido para inserir as doze partes do signo que servia de chave. Ao inserir a última, um êxtase tomou conta do corpo de Petrus.
Corpo e mente vaguearam pelo espaço onde nada existia; nem o ardor do sol, nem o desejo dos amantes, apenas uma pálida luz azulada. Uma nostalgia infinda apoderou-se de Petrus ao ver-se só, caminhando numa trilha sem sombras à margem do leito de um rio, onde corria um espesso líquido de brilho prateado. Na superfície lisa, uma ondulação ocasional quebrava languidamente na margem escura com brilhos ocasionais.
O caminho parecia se desfazer numa reta e, um pouco mais adiante, num objeto sólido como um molhe a se projetar sobre o rio. Não havia mais nada visível além do fim do molhe. Mas havia um som lento, suave e regular lá fora, no invisível. Petrus sentou-se e esperou. Então, o barco apareceu.
O velho barqueiro aproximou-se do molhe e se comoveu com a esperança nos olhos de Petrus. Não houve necessidade de falar. Estendeu a mão e recebeu, no bojo de seu barco de titânio, o homem em busca da mulher amada. Assim, navegando juntos, o barqueiro de olhos claros e úmidos e o viajante com olhos de esperança chegam à margem visível, às portas de uma cúpula translúcida. Petrus despede-se do barqueiro e desce para a praia de areias brancas, sem que o barco balance no espesso líquido.
Antes do barqueiro desaparecer no invisível, a porta abre-se ao toque suave da ponta de seus dedos. Dentro da cúpula, estava amanhecendo. Uma ampla luz doura a planície sem fim que se estende ondulando suavemente. Embora houvesse grandes árvores, a maior parte era coberta por relva baixa numa variedade infinita de tons de verde e matizes dourados. Era primavera e das minúsculas flores emanam delicados perfumes, das grandes árvores que dobram seus galhos ao alcance da mão pendem frutos maduros.
Ele despe-se e caminha sob a cúpula sem olhar para trás. O homem descoberto não sente frio, sede, fome ou cansaço, apenas uma morna embriaguez. Seus passos trilham um caminho sem marcas humanas. Após uma jornada, cuja duração não pensou em determinar, ouve o barulho de um mar batendo nas rochas de um penhasco.
O homem permanece parado por alguns instantes, cheira o ar, ergue a cabeça com o lábio superior voltado para dentro, e depois, como se cerrasse as narinas, respira fundo pela boca. Ele intercepta o cheiro da mulher amada. Orientando-se pela trilha deixada pelo seu cheiro, encontra-a na margem daquele mar, na união dos dois elementos...
Zélia Viana Paim
Imagem/Foto de Zélia Viana Paim

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

No Terraço Circular

Carma vivia há mais de cento e cinquenta anos, não sabia mais ao certo quantos porque já havia perdido a conta de seus dias. Ela esperava ver o final dos tempos; no entanto, secretamente, desejava sobreviver a ele e viver eras sobre eras.
Muitos eram os seus anseios relacionados ao devir, um deles era que a sucessão de dias, horas, minutos e segundos que encerram o homem no seu exíguo viver não existisse. Outro, que a inveja associada ao ódio, ao prazer na adversidade do próximo, a aflição em relação à felicidade alheia fosse erradicada. Quase desejava prever um mundo ideal, onde não haveria causa para fome ou pranto.
A face de Carma era cortada por mil rugas finas que lhe estreitavam os olhos claros. No entanto, ainda tinha as mãos e as pernas fortes, e a pele cor de cuia possuía um brilho natural como o das indígenas. Seus dias preferidos eram os dias claros, quando a aurora levantava-se no mar oriental, oferecendo generosamente sua luz ao mundo. Suas roupas eram da cor das pedras, das folhas, dos troncos e dos musgos, mimetizando com o ambiente ao redor.
Ela vivia no alto de uma montanha, numa espécie de terraço circular, de onde avistava todo o horizonte. Era um lugar inacessível por vários motivos, não apenas para aquele que não soubesse andar sobre rochas imensas, saltando sobre os espaços entre uma e outra. Em todos aqueles incontáveis anos, poucos se atreveram a passar além da primeira pedra que fechava o imperceptível caminho que serpentava a montanha.
Ao pé da escada de pedras, o simples curioso sentia sua alma devassada, obrigando-o a recuar em seus passos. Só o crente na existência de seres tão antigos como o princípio dos tempos ultrapassava essa espécie de portal. Esses poucos que chegavam até o topo juraram ter visto um ser fugidio e resplandecente seguir seus passos por todo caminho de pedras.
Lá, longe da morte e da guerra, vivia Carma com o filho Jonas. Ele tinha a face indecifrável, do mesmo modo o número de anos que já tinha vivido. Sua aparência era a de um ser mitológico. Um centauro, no dizer de sua mãe. Se ela não soubesse que era nascido de suas entranhas diria: uma cria de homem e bicho de cascos.
Os cabelos de Jonas eram de um crespo graúdo, o bigode fino contornava os cantos da boca e o cavanhaque terminava em uma fina trança abaixo do queixo. Sua face era quase negra e tinha as mãos e os pés encardidos da terra e do verde das plantas. Seus dias preferidos eram os de chuva, quando, então, andava pela montanha assobiando uma música que só ele ouvia.
Carma ensinou Jonas a não matar ou fazer matar, roubar ou fazer roubar, falsear a medidas das coisas concretas ou abstratas, apartar os pássaros de seus ninhos ou as crias de suas mães. Ensinou-o a ouvir o rumor de armas e a não ultrapassar a linha tênue e de cor igual a nenhuma outra que separava um mundo de outro mundo.
Jonas lembrava Jacinto, o único homem que Carma muito amou. Ele havia morrido em uma das primeiras guerras de todo o seu tempo vivido até então. Sua morte não foi por ter sido soldado ou por tomar parte em algum exército, mas por estar cansado de fugir das forças que queriam a arraia miúda para servir como ponta de lança em batalhas perdidas. Jacinto morreu porque não teve forças para escapar de mãos jovens e trêmulas que seguravam baionetas sedentas de sangue num descampado em uma noite sem lua.
No amanhecer do dia seguinte à morte de Jacinto, Carma preparou-se para abandonar o convívio dos humanos, grávida de poucas semanas. Caminhou por toda a primeira noite e muitas outras mais, querendo chegar ao tempo mais distante. Ela deu-se conta desse singular caminhar quando viu tudo passar por ela, a paz e a guerra e, novamente, a paz e a guerra. Assim foi até o amanhecer de um dia como hoje, uma manhã como esta quando se encontrou ao pé da escada de pedra que dava acesso a esse seu lugar sem tempo.
Em seu agora, via Jonas aproximar-se, balançando a cabeça, lembrando certa vez em que estava com Jacinto. Ele, em sua posição preferida, sentado sobre seus calcanhares, muito sério, macerando na palma de uma das mãos o fumo recém cortado, matutava. Este era um ato muito mais profundo do que o pensar, era como se outro ser, mais sutil, pensasse por Jacinto. Ao cabo de algum tempo, lhe dissera baixinho, como se contasse o último segredo da vida:
- Tenho matutado... Deus está nos joelhos e no alto da cabeça, bem na moleira. Por isso, pra fazer uma prece é preciso ajoelhar na terra e manter a cabeça como um prumo... Decerto, assim, fez Cristo.
Carma pensou em como alguns acontecimentos como este ficaram gravados tão nitidamente na retina. Levantou-se do lugar onde estava sentada, colheu um ramo de funcho que colocou atrás da orelha e uma folha de melissa que colocou entre os dentes, mascando suavemente até sentir a seiva doce na língua. Pensou na mãe, na avó e na mãe desta. Seus homens, também, haviam morrido de morte violenta.
Por muito tempo, não pensara nestes acontecimentos, esquecera que a história de sua gente era a sua história. Lembrava agora o mistério insolúvel envolvendo a morte de seu bisavô; a morte explícita de seu avô degolado em praça pública; a morte de seu pai numa briga de bêbados que não era a dele. Essas eram mortes consideradas pouco dignas naqueles tempos bárbaros. Ao contar a Jonas, ele respondeu:
- Assim é a vida e suas criaturas - sentando sobre seus calcanhares, enrolando entre os dedos a trança que pendia de seu queixo.

Zélia Viana Paim
Imagem  Peabiru_Garuva (PR)

domingo, 21 de agosto de 2011

Poço dos Espíritos

Era uma cidade minúscula à beira de um rio estreito, profundo e ceifador de vidas, tinha poucas ruas, doze na direção norte-sul e vinte e quatro na direção leste-oeste. De qualquer ponto da cidade onde o morador ou visitante se encontrasse poderia avistar os campos ao redor. Era um quase nada de cidade, mas carregava uma sina trágica de mortes e almas penadas.
Os mais velhos diziam que a cidade se formou devagar, ficou muito tempo sem nome. Os moradores das fazendas ao redor, chamavam o lugar de vila, como se, na verdade, não quisessem ninguém ali ou, então, cidade alguma ali enraizasse.
A vila recebeu um nome, Poço dos Espíritos, e começou a tomar pé, com a chegada dos padres jesuítas. Mesmo assim, cresceu a passos lentos e conservadores, dividida em duas: uma, a cidade alta, sede do poder civil e religioso e das residências dos proprietários rurais, que se formou em torno da praça da igreja e do colégio.
Na outra parte, a cidade baixa, onde Cândida morava, se desenvolveram as atividades comerciais e se fixaram as casas dos profissionais que aprenderam seu ofício com os jesuítas: os ferreiros, os marceneiros, os curtidores, os oleiros. A cidade baixa também recebeu aqueles que vieram depois, os turcos das casas de tecidos e miudezas, os caixeiros-viajantes dos armazéns de secos e molhados. Esta parte da cidade se formou em torno de si mesma.
A vila depois da chegada dos jesuítas, antes de se tornar Poço dos Espíritos, teve seus caminhos realinhados. Eles traçaram novas ruas, retas e largas, no seu desejo de ordenar o espaço, na sua preocupação em manter o lugar adaptado à distribuição dos misteres sumamente importantes para o bom andamento da futura cidade.
Embora os jesuítas comandassem, arbitrariamente e com sucesso, o traçado das ruas e depois a ordem na cidade e, até mesmo, a história pôde ser dirigida, ela também aconteceu à revelia da vontade dos jesuítas de ordenar o espaço e as mentes. Foi assim que, na infância de Cândida, a cidade se armou e seus filhos guerrearam por ideais divergentes.
Roubando à lembrança esse tempo vivido, Cândida não sabia precisar quanto tempo demorou desde a notícia da primeira embosca e da última traição até Poço dos Espíritos se tornar o destino final de tanto medo e tanto ódio. Foram dias de luta, entre parentes e vizinhos, que se desenrolaram nos pátios, nos becos, nas ruas, nas praças, nos arredores.
Depois que as balas terminaram, que os braços se cansaram de brandir adagas e cortar gargantas, depois que todos os que estavam fadados a morrer até aquele último dia morreram, as mulheres destrancaram as portas e saíram às ruas, recolheram os corpos e prantearam seus mortos com amargura.
Cândida que tinha ficado fechada no porão junto com suas irmãs teve seus sentidos aguçados para sempre. O motivo talvez tenha sido o silêncio profundo no qual estava imersa, quebrado apenas pelo som dos passos, tiros, arquejos de morte, últimos suspiros e pelos barulhos que só no escuro se propagam.
Desde, então, porém, ela nunca mais pôde ficar numa peça com janelas fechadas. Mesmo se o frio fosse cortante e os passos andassem quebrando a geada pelos caminhos no inverno do tempo, Cândida procurava uma fresta qualquer para que pudesse sentir no rosto um sopro do vento por mínimo que fosse.
Depois das lutas, dos velórios, dos enterros que encheram o cemitério de covas rasas e túmulos complexos, a morte se esqueceu de voltar a Poço dos Espíritos. Dias e noites, meses e meses, anos a fio, durante longo tempo ninguém mais morreu por lá. As sombras não se enriqueciam de novas almas e o cemitério jazia como um canto da cidade sem utilidade nem função.
Em contrapartida, a população triplicou, muitas crianças vieram ao mundo, mulheres que pensavam não serem mais férteis, as casadas de muito, as casadas de pouco e as solteiras pariram, como se todas tivessem que provar da fertilidade de seu ventre ou repovoar a cidade. Cândida, também, casou e teve seus filhos.
Então, quando ninguém esperava mais, houve a primeira morte. Uma mulher jovem de vinte anos apenas, depois de comer talhadas de melancia, caiu ou foi jogada da margem mais alta do rio e morreu afogada num poço, que diziam sem fundo. A cidade custou a crer nessa morte.
Os moradores puseram-se a rondar, dias seguidos, as águas negras do rio, procurando ouvir notícias do paradeiro da mulher no murmúrio das águas, mas elas nada lhes segredaram. Afinal, aquele sempre havia sido um rio traiçoeiro de águas negras e frias, de lamentações e memórias perdidas. Quando, enfim, as águas devolveram o corpo, a barriga da defunta estava dura como pedra e os cabelos penteados em duas tranças perfeitas que mãos humanas não puderam desfazer.
Cândida, não se surpreendeu com o acontecido, pois havia sonhado durante a noite com um caixão negro seguido por um cortejo sem fim que caminhava pelo leito seco do rio em total desalento. Nas margens, os salgueiros debruçavam-se tristemente, como se chorassem a própria solidão à passagem das almas cabisbaixas dos mortos da cidade de Poço dos Espíritos.
Zélia Viana Paim

terça-feira, 31 de maio de 2011

O Perfume das Magnólias


Cronistas antigos contaram que a cidade chamada Arvoredo desapareceu da face da Terra por obra do desatino completo de seus moradores.
Arvoredo era a última cidade localizada no extremo do país, distante pouco quilômetros da margem que delimitava o continente. A cidade sempre foi pequena, não só pelo espaço físico que abarcava, mas a mentalidade de seus habitantes também era tacanha. Assim os qualificaram os cronistas da época por delicadeza ou bondade.
Nos primórdios da cidade, seus fundadores traçaram ruas retas, que se cortavam em ângulos retos e o desenho das quadras se aproximava do tabuleiro de xadrez. As calçadas foram pontuadas com mudas nativas, e as ruas largas receberam no canteiro central mudas de magnólia branca, orgulho dos cidadãos de Arvoredo.
A cidade cresceu pouco, os pioneiros morreram e as gerações passaram como folha ao vento. Durante muitos anos, nada foi construído ali, nenhuma calçada ou rua, nenhum galpão ou casa, nenhum muro ou cerca, nem mesmo um poço artesiano, que, nos primórdios, também era o orgulho de cada morador.
O governo também não mudava; apenas se alternava entre duas famílias, os Alonso e os Garcia. Nem a razão para esse continuísmo era questionada. Acontecimentos, que não convém trazer à tona, levaram os seus concidadãos a pensar: “nada mais natural, pois eles são os donos de quase toda Arvoredo”.
A maioria dos moradores de Arvoredo tinha um aspecto cansado e triste. A pele enrugada e seca, os cabelos opacos, os olhos baços, os lábios contraídos. Andavam com paços miúdos e rápidos, sem tempo para um dedo de prosa. Pareciam coelhos de estimação de duas Alices, muito atarefados em compromissos urgentíssimos e inadiáveis, ou, simplesmente, assustados.
Fato é que os habitantes se acostumaram com a cidade mal cuidada, como se ela não fosse deles. O mato crescia nas ruas, e o lixo acumulava-se nas sarjetas. Na época das chuvas, os ratos, ratazanas e outros bichos menos nojentos socorriam-se, boiando em cima dos entulhos carregados pela água suja, que rolava pelas ruas e escorria cidade abaixo rumo ao rio assoreado.
Tal cenário contrastava com a casa bem cuidada de alpendre alto, que exibia em sua fachada duas janelas amplas, como grandes olhos voltados para a cidade. A porta avantajada era o orgulho dos proprietários, feita de um único tronco de cedro rosa, entalhada com cachos de uva e hortênsias que rodeavam um brasão com as letras A e G entrelaçadas. Essa era uma casa de comércio, onde os moradores de aspecto cansado e triste trabalhavam. Facas, facões, serras, machados eram os produtos vendidos, aos quais se somava a grande novidade da época, a motosserra.
Desde que o primeiro dos Alonso havia assumido o poder, mal clareava o dia, uma voz anônima suave e envolvente bombardeava os cidadãos com slogans sobre a excelência do seu sistema de governo. Os cidadãos de Arvoredo não se questionavam com desdobramento inexplicável do discurso que se produzia neles, nem sequer se ouviam repetindo as mesmas palavras ditas.
Os cronistas contaram que o desatino começou quando a mesma anônima voz passou a propalar, em decibéis apropriados, do alto-falante instalado em altíssimo poste no centro da praça, as maravilhas proporcionadas pelo uso da motosserra. A voz flutuava por todos os lados, dissolvida no ar que respiravam. Era a verdade de Arvoredo; qualquer sentimento de hostilidade seria inútil, ou mesmo impensado.
Então o discurso e os fatos fundiram-se. Um lote de terra arborizado teve suas árvores cortadas em pequenas toras de metro e meio. Em questão de horas, aquela parte da Terra estava limpa de frondosas espécies, sob o olhar entorpecido dos espectadores. Nenhum deles jamais questionou o poderio desenfreado do homem armado contra a árvore.
Certo dia, a estranha febre, de que falaram os cronistas, alastrou-se. Principiou quando todos os homens adquiriram a própria motosserra, cujo pagamento, dividido em incontáveis vezes, pesava em seus parcos ganhos. Mas o peito de cada um estufava como o de um sapo cururu a um simples olhar para a máquina. Sentiam-se poderosos alçados de simples homens ao status de proprietários da máquina.
Os fins de semana passavam num afã incansável. Principiaram pelo corte das araucárias centenárias, depois pelo corte dos eucaliptos plantados há quinze anos. Cortaram as árvores nativas: os mognos, os angicos, as aroeiras, os ipês e os cedros; a seguir, cortaram as árvores frutíferas: as laranjeiras, os pessegueiros, os limoeiros, as goiabeiras, nem as parreiras escaparam; por último, derrubaram as magnólias. A cada semana a derrubada ia mais longe.
Segundo o que contaram os cronistas, demorou um tempo considerável, mas não restou uma árvore sequer nos pátios, nos terrenos baldios, nas ruas, nas praças, nos campos, nas margens do rio e dos córregos do município inteiro. À medida que as árvores tombavam os animais se afastavam dos homens e do barulho. Os gatos foram os primeiros, seguidos pelos cães, galinhas, vacas de leite e suas crias.
A cidade parecia mais limpa sem árvores. A limpeza era glorificada pela voz anônima e suave. Todos sorriam uns para os outros satisfeitos, passaram a andar com a cabeça erguida, com paços mais lentos, reuniam-se em grupos e conversavam sobre a transformação. O olhar se estendia ao longe sobre a terra nua como uma chaga, alcançando o horizonte e mais além, afirmavam que podiam ver a curvatura da Terra.
Os compradores de madeira chegaram das regiões próximas e distantes, comboios de caminhões saíam da cidade, carregados de troncos. Os habitantes de Arvoredo encheram os bolsos, antes vazios. Tempos depois da venda da madeira, o clima da região alterou entre calores infernais durante o dia e frios glaciais à noite.
Os moradores passaram a andar cada vez mais rapidamente, com a cabeça baixa, quase enterrada no peito. O sol violento e as escassas sombras das casas forçavam aqueles que se arriscavam a sair às ruas a andar de lado rente as paredes e muros. De humano, não se ouvia um balbucio. De bicho, nenhum som sequer, nem de pássaro, nem de sapo, nem de grilo. Um silêncio sepulcral reinava em Arvoredo.
Os habitantes notaram, com estranheza, a falta que sentiam de coisas bizarras como o farfalhar das folhas à passagem de delicada brisa; os galhos batendo nas vidraças, embalados pela chuva; o hábito dos pássaros, ao amanhecer, voarem baixo ao redor das árvores do pernoite; o tremeluzir das gotas de orvalho nas pontas das folhas antes de caírem ao solo; o perfume das araucárias e dos eucaliptos. Entre todas as estranhezas, sentiam mais a falta do perfume das gigantescas flores das magnólias.
Os cronistas contaram que ninguém soube jamais explicar os motivos que levaram aos acontecimentos que se seguiram. Os habitantes começaram a sangrar pelas narinas; primeiro, foram os Alonso; depois, os Garcia, contagiando as pessoas que cuidavam deles. O estranho sangrar se alastrou pelas famílias inteiras de Arvoredo que não puderam fugir. Não houve tratamento que impedisse o sangrar, foi como se o organismo de cada um não pudesse, ou não quisesse mais, conter em si a própria seiva.
Aqueles que se mantiveram em pé por último tiveram que enterrar os mortos em vala comum, não havia madeira nem tempo para esperar mais caixões. Por fim, quando não restava mais morador em Arvoredo, a tarefa de enterrar os corpos insepultos coube aos habitantes da cidade vizinha, não por se importarem com os fatos ocorridos, tampouco por solidariedade humana, mas por não suportarem mais o mau cheiro que tornava o ar ainda mais irrespirável na região.
Os cronistas contaram que, muito tempo depois de tudo ter passado, a montanha de terra que cobria a vala comum esquentou, expelindo um vapor formado pela decomposição dos corpos. O vapor subiu como um fio escuro ligando a Terra ao Céu. Pairou sob a região e aos poucos condensou, formando nuvens espessas e imensas que se derramaram em chuva ácida e contínua por dias. O nada que restava de vida no município de Arvoredo desfez-se enfim. O solo do município apodreceu. Nada mais nasceu naquela parte da Terra onde, outrora, localizava-se a cidade de Arvoredo, contaram os escritos dos antigos cronistas.

Zélia Viana Paim
Imagem Magnólia Grandiflora

terça-feira, 17 de maio de 2011

Tempo de Contrários

La Gallega, a pequena caravela, singrava o mar profundo há mais de dois meses em direção ao pôr-do-sol na busca de terras novas. Era um barco de casco em “v”, seguro, veloz e de grande mobilidade, característica que lhe permitia navegar ventos contrários. O capitão era homem de poucas palavras e produzia, nos companheiros de viagem, sentimentos alternados de admiração e pavor. Era considerado um louco pela tripulação que temia tanto olhar em seus olhos quanto desobedecer a suas ordens. Os dois jovens, Inês e Miguel, veneravam-no mais que a qualquer outro mortal. O que irmanava os viajantes era àquela altura da viagem estarem todos esgotados; situação agravada pelo racionamento de comida e água.

Inês navegava com o capitão pela primeira vez e àquela manhã, quando acordou, temeu mais uma vez pelas suas vidas.
– Poderosa deusa! Que tempo é este que nunca vi? – Resmungou para si mesma.
O dia amanhecera com uma cor quase impossível de descrever. Nuvens indomáveis corriam de um extermo a outro no céu acima de sua cabeça. O nascente azulado sem um fiapo branco sequer e o poente encoberto de nuvens roxas que se enrolavam uma sobre as outras como se fossem meadas de linha. Aos olhos de Inês, parecia o caos do início ou do fim dos tempos.
– Não desabeis vossa fúria sobre nós. Recuai! Não jogueis sem piedade esse barco no profundo mar. Livrai-nos dos monstros que habitam o insondável abismo! – Pedia a jovem Inês, erguendo as mãos para as nuvens e as baixando para o mar repetidamente numa dança singular.
Inês confiava no capitão, conhecia-o desde menina, do tempo em que sua mãe ainda era viva. Acreditava nele. Admirava-o. Era um homem muito sábio. Sempre foi navegador, conhecedor dos caminhos do mar e das estrelas do céu. Mas agora navegavam um mar desconhecido e as estrelas ainda não tinha função nem nome.
– Os elementos, nestes confins, talvez desconheçam o homem e suas minúsculas naus. Por que fui tirar meus pés da terra firme? Ah! Sábia criatura, para não seres queimada numa fogueira como tua pobre mãe. Lembra-te! Esses ainda são tempos governados pela santa Igreja – respondeu para si mesma, abraçando o corpo estremecido por um calafrio.
A fixação de Inês pelo poente, a paixão pelo desconhecido fora a única coisa que herdara da mãe. Ela fora uma mulher bela e sábia, conhecedora do poder das fases da lua sobre as marés e das estrelas sobre o destino dos humanos. O saber de Inês era outro: o poder oculto das plantas.
Sabia de plantas com folhas e galhos escuros, sem flores, com frutos negros, de forma rara e estranha, com crescimento tão lento quanto a eternidade, que tinham o poder de entorpecer os sentidos. Sabia de plantas que existiam somente perto da água doce, com folhas frias e enormes, cujo leite sem sabor excitava mil vezes o apetite sexual. Sabia o poder de muitas mais. Esse seu saber, como o de sua mãe, também era perigoso aos olhos dos que tinham poder.
Isso tudo pensava Inês, em sua limitada cabine, enquanto macerava folhas secas de mirra com seus dedos delicados de unhas curtas e rosadas em um pote de porcelana. Quando se tornaram pó, arrumou um montículo numa pequena concha de madrepérola e, virando-se para o poente, ateou fogo e invocou quando um fio de fumaça subiu serpenteando em espiral:
– Poderoso e imortal Zéfiro! Bondosa força do vento Oeste! Socorrei estes míseros mortais que ousaram ter poder para navegar sob as estrelas no desconhecido mar. Conduzi essa nau pelos caminhos do mar ao encontro da terra firme. Deusa poderosa! Agradeço a vós, sapientíssima e amorosa, pelas palavras que saíram da minha boca.

Alheio a reza e ao ritual de Inês, Miguel, o cristão novo, amigo e ajudante do capitão, também estava incomodado com a cor do céu naquela manhã.
– Eu acredito no capitão, ele é o mais sábio dos homens. É um homem poderoso. Os caminhos do mar desconhecido se abrem generosamente para ele. Logo, ele é capaz de navegar o mar sem fim. Tenho fé! Nosso Senhor, Deus-Todo-Poderoso! Ele chegará aonde deseja ir; – afirmava para si mesmo, completando – embora, o tempo não esteja do seu lado.
As palavras escapavam de sua boca como se fosse uma prece. Miguel era alto, com a pele clara, os cabelos e os olhos negros. Sob o lábio leporino quase imperceptível, usava um bigode. Vivia para perscrutar o horizonte infinito durante o dia, e as estrelas durante a noite. Era minucioso nos seus cálculos e de total confiança do capitão.
– Meu Deus! Pelos meus cálculos, já navegamos toda a água estimada pelos estudiosos, já ultrapassamos inúmeras vezes a linha do horizonte. E até agora nada, nenhum sinal de terra. Meus olhos cansados avistam caudas de dragão seguindo a nau. Poderiam avistar, ao menos, uma ave qualquer no céu. Essas sim seriam um bom presságio, mas nada, nada, a não ser o desconhecido insondável, a sombra dos mitos e este tempo que não é nosso. Tempo de outros tempos, outras eras, outros mundos – falava gesticulando em volta da mesa com mapas abertos sobre ela e, sobre os mapas, bússolas, astrolábios e quadrantes.
Desde menino, Miguel acompanhava o capitão em suas viagens, navegara com ele pelos mares quentes da África e pelos mares gelados do Norte. A sua educação na arte da navegação fora destinada ao capitão pelo próprio pai. Ele era um mercantilista judeu que acumulara grande fortuna, em pouco tempo, graças a seus empreendimentos na navegação. O pai de Miguel pretendia fazer dele capitão de sua própria nau e, talvez, de sua própria frota. Miguel considerava o pai um homem de visão aguçada para a época.
– Meu Deus, Pai Todo Poderoso, Senhor do Universo, céus e terras estão sob vosso domínio, ajudai-nos, tende piedade de nós – pedia enquanto escrevia em seu diário:
"Estamos a sessenta o oito dias no mar. A última vez que vimos terra foram as ilhas onde abastecemos de frutas, água e caça há quarenta e oito dias. Depois não encontramos mais terra. Enfrentamos todo tipo de tempo nesses meses de viagem: tempestade, bonança, calmaria, mas nunca um tempo assim. O céu está em revolta e as nuvens estão bem próximas, creio que, em breve, desabarão sobre nós. O mar está calmo e liso como um rio. Isso não o impedirá de nos esmagar como seres ínfimos que somos à mercê de seus humores. O capitão não dá mostras de preocupação, mandou baixar as velas, deixando somente a da popa e deu ordens para contemporizar e esperar a tempestade."

Miguel fechou o diário e saiu ao encontro de Inês, alcançando-a no instante em que soprava cinzas para o vento. Na proa, os dois jovens miraram o poente esperando algum sinal. À frente deles, as nuvens eram como um paredão roxo quase negro. Então, suas narinas dilataram, e ambos sentiram uma leve mudança no cheiro salgado de mar. O vento mudara trazendo um perfume dulcíssimo, tão agradável que deu aos dois um prazer imenso em senti-lo.
– Estarei tendo novas alucinações? – Perguntou-se Miguel, mal mexendo os lábios, tentando menosprezar a secreta alegria que tantas vezes antes provara ao sentir o cheiro de terra a léguas de distância.

Um troar de trovões anunciou a chuva que desabou copiosa sobre o mar, os pingos eram grossos, pesados e quentes. Miguel e Inês voltaram aos seus lugares. O mar liso encrespou levantando vagas imensas que batiam no lenho com estrondo de mil tambores. A tripulação lutou para proteger o barco e a vela da reviravolta inesperada do vento. Choveu durante horas ininterruptas. Parou no fim da tarde, quando o sol ainda estava a um palmo do horizonte. Um bando de aves brancas, nunca vistas, retornando para terra, veio dar à nau. Era o segundo sinal de terra, em quarenta e oito dias, navegando sempre em direção ao poente. Na proa, Inês e Miguel sorriram igualmente agradecidos e crédulos.

Zélia Viana Paim
Reescrito, publicado, em 2004, no Jornal Letras Santiaguenses.