quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Enquanto a Terra gira


As nuvens pinceladas no horizonte pareciam brasas incandescentes, e o sol, um ponto vermelho como sangue. A luz do entardecer acentuava o brilho dos olhos escuros e mansos de Lúcia. Por trás da mansidão do olhar, perpassava um sorriso irônico, mas essa face velada era um vislumbre apenas para ela na sua imagem refletida no espelho. Lúcia morava com Pedro na mesma casa, que fora de sua bisavó, erguida no meio do pampa.
Era uma casa de dois andares, com duas torres separadas por uma saleta forrada de prateleiras repletas de livros antigos e raros. O quarto dela ficava na torre norte, o lado iluminado, o dele ficava na torre sul, o lado sombrio. Lúcia quase não saía de casa, e Pedro vivia a vagar pelos campos de revolução, degola e morte.
Lúcia procurava não pensar no perigo dessas andanças. Aprendera que se rebelar contra a hora da morte era tarefa vã. Lera nos livros que as servas do Destino são incansáveis em fiar o fluxo da existência humana, em tecer o ritmo da criatura e marcar a hora da morte. O corte do fio da vida é parte do trabalho da serva, obedecendo a um capricho do seu senhor: o momento definitivo de se abandonar o corpo.
Agora a luminosidade alongava a sombra de tudo sobre terra, os caules e troncos das árvores mais próximas tinham um tom rosado. A noite logo cairia com um manto negro ao redor. O tempo fluía devagar como uma reza de beatas na saleta, onde Lúcia lia. Os olhos arderam, ela levantou-se e acendeu o lampião, procurando não pensar em Pedro andando sabe-se lá onde, à mercê de maragatos e ximangos.
Pedro e Lúcia eram os últimos que restavam da família. Eram da mesma idade, haviam sido criados juntos e, assim, viviam há mais de um par de décadas. Agora, as volúveis opiniões dos homens não os impressionavam mais. Concordavam que eram as forças impalpáveis do universo que os amedrontavam, moviam-nos como marionetes e se dedicavam a fazer deles os seres que eram.
Foi assim que, no tempo próprio em que cada espécie encontra um par, não encontraram ninguém, a não ser um ao outro. Sabiam também ter direito ao amor, à força universal da atração que justifica a união dos seres, engendrando as linhas de descendência que acabam por ligar a todos: os deuses, os homens e mesmo os deuses e homens. Eles seriam sempre únicos; pois, com os dois, toda a história dos seus encontrara o fim.
Sem pensar em Lúcia, Pedro chegou ao alto do cerro do qual se avistava o horizonte ao longe. Era um cerro de pedra de cume achatado no qual dormitavam lagoas eternas e cristalinas. A chegada foi um instante antes da hora em que o dia se transforma em noite, e todos os seres e as pedras perderam seus contornos próprios. Então, tudo se tornou uno.
Pedro era um duplo: carente e andarilho, herança da mãe; corajoso e esperto caçador, herança do pai, irmão de Lúcia. Há anos, desde o começo da revolução, passava os dias e parte da noite campeando, olhando aqui e ali, desconfiando de seus passos, vigiando seus flancos, esperando ser atacado a qualquer momento por homem ou sombra.
Ele desertara, por causa de Lúcia. Mas mesmo sem tomar parte nas batalhas, estava na guerra como todos. A morte rondava a pé e a cavalo pelos pagos. Lembrava a si mesmo disso, como se estivesse se desculpando pelo cheiro de sangue e de morte entranhado nas ventas. Vivia apartado dos homens, não tinha amigos nem inimigos. Não sabia o que procurava, não defendia um ideal, apenas desferia golpes ao acaso, ao léu, ao vento.
A revolução havia passado perto dali, onde ele vivia com Lúcia. Tudo que havia sido destruído seria, novamente, construído. Os bichos e os homens que sobreviveram voltariam a morar na antiga morada. Assim era a guerra, assim seria a paz, enquanto algures o mal não revivesse. O terror e a discórdia, o amor e a paz se alternavam sempre, às vezes, na mesma geração de homens.
No alto do cerro, Pedro sentia um torpor penetrar por seus poros e paralisar todos os seus músculos e nervos. Não se sentia mais vigiado, todas as preocupações abandonaram seu coração, a mente desanuviara-se, a vida ganhara esplendor. Pedro desejou ter, por um momento, o poder dos homens sábios ou santos para intervir de maneira decisiva nos acontecimentos do mundo. Mudar o seu destino ligado ao de Lúcia desde sempre, mudar a condição imposta para viver esse amor insano.
O latido de cães, ao longe, resgatou Pedro do torpor e do quase arrependimento. Abriu os olhos para a noite soturna. Toda terra ao redor, até onde seus olhos podiam ver ali do alto, estava tomada pela noite mais escura de sua existência. Somente nas partes baixas que formavam os pequenos vales onde corriam arroios e sangas pairava uma névoa esbranquiçada, cujos fios no topo das árvores se enrascavam como inimigos ou como amantes.
Pedro retomou seus passos por caminhos de breu. Os cães, que ouvira antes, anunciaram a sua chegada em casa. Ao aproximar-se de Lúcia, um novo estado de espírito se apoderou dele, sentia-se decidido e sereno. Sabia que Lúcia estava sentindo exatamente o mesmo.
Sabiam que nenhum dos dois mudaria depois de ter sentido na pele a carícia das mãos do outro. Aqueles seriam eles para o resto da vida. E assim, sem se perguntarem se outros amantes apaixonados antes deles teriam sentido um amor capaz de proporcionar tamanha infelicidade e prazer, ficaram deitados juntos. Enquanto a Terra gira.

Zélia Viana Paim
Imagem Terra_Gaia

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