sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Flor de Defunto

Jasmim era a sua flor preferida, pelo perfume inebriante, pela alvura e pela textura das pétalas. Tal fascínio não se resumia ao desejo de olhar, de cheirar e de tocar, Maria precisava também satisfazer o desejo de comê-las. Ela não lembrava quando começou a comer as pétalas do pé de jasmim que nasceu e cresceu sem que a mãe e a avó se dessem conta no canto esquerdo da parte de trás da casa.
Certamente, foi muito antes de saber sobre o tio da avó. Antes disso, não entendia o desatino dela, fazendo-a cuspir fora o que restava das pétalas mastigadas gritando:
– Jasmim é flor de defunto, guria – enquanto lavava sua boca com água benta de uma garrafa que mantinha na geladeira para ocasiões que exigiam uma ação divina imediata.
Com o passar do tempo, Maria passou a duvidar que jasmim fosse flor de defunto, embora notasse ao toque certa semelhança da pétala com pele de gente viva - ao arrancar uma pétala da flor, era como se cortasse um pedaço da pele de alguém. Eram pétalas carnudas e sedosas não eram finas como as pétalas de outras flores. E, estranhamente, nunca avistou um jasmim sequer no cemitério.
Quando ia com avó e a mãe lavar o túmulo dos antepassados e trocar as flores secas por outras recém colhidas, rosas, camélias, cravos, palmas ou copos-de-leite, nunca levavam jasmins. A avó e a mãe faziam questão da troca pelas flores frescas de tempos em tempos. As flores eram elementos essenciais, porque testemunhariam o respeito devido à memória dos seus mortos. A deposição das flores era o momento nuclear do rito de recordação e o gesto explícito da visita ao cemitério.
Nessas visitas, as duas recordavam-lhe segredos de vida e de morte que rondavam sua gente. Um deles, em especial, dizia respeito a um tio da avó, morto por causa de um insano amor que lhe despedaçou o coração. Era uma história incansavelmente contada.
Esse tio havia sido um homem de vida conturbada. Na juventude matara dois homens, um em legítima defesa, outro para defender o irmão pai de família. Como os mortos eram forasteiros, ninguém denunciou o acontecido, ninguém reclamou ou velou seus corpos. A autoridade municipal, cada uma ao seu tempo, deixou por isso mesmo, enterrando os corpos na ala dos indigentes sem nome, sem passado, sem história.
O tio da avó casou homem já maduro para aqueles tempos, quando ninguém mais esperava, com uma mulher muito jovem. Arrastou a mulher, franzina e pálida como um lírio, para morar em um fundo de campo, longe de tudo e de todos, onde a retidão da estrada de ferro fazia a curva. Lá, no distante e ermo longe, o ciúme do nada ou de fantasmas tomou conta dos dias e das noites do pobre homem que berrava impropérios às sombras e ameaças aos troncos de árvores.
Santinha, a mulher objeto do insano ciúme, sofreu por sentir que seria impossível viver um amor assim. Aproveitando o sono de quase morte do marido cansado dos dias e noites de vigília, a mulher fugiu, sumindo no mundo seguindo a retidão da estrada. Nunca mais se ouviu falar dela.
Três dias depois o tio chegou à cidade no rastro da mulher. Alucinado vagou pelas ruas sem paradeiro, recusando abrigo e ajuda dos parentes e dos poucos amigos. Num sofrimento sem fim, perseguiu a morte arrumando arruaças nos bares e becos por tudo ou quase nada.
Sete dias contados depois da partida de Santinha, o corpo sem vida com o coração despedaçado por uma bala de arma de caça foi encontrado ao relento, caído num terreno baldio em noite de trovões e tempestade com os bolsos repletos de flores de jasmim e a boca de pétalas mastigadas.
Maria, quando menina, não negava o fascínio pela história daquele parente distante, acentuado pela coincidência das flores de jasmim e, também, pela imagem do homem na lápide que não condizia com a vida alucinada do tio. Era uma fotografia datada do dia do casamento dele e mostrava um belo homem, os cabelos eram loiros e os olhos claros quase transparentes como os dos santos. Adivinhava-se a boca bem feita e carnuda sob um bigode farto de pontas reviradas para cima. O bigode emprestava ao rosto um ar quase jovial e irreverente, mas Maria, desde menina, preferia a beatitude incoerente do olhar.

Zélia Viana Paim