segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O Ensaio


Petrus encostou-se à parede de cristal no centésimo andar do prédio onde estavam instalados os laboratórios e alojamentos destinados aos cientistas da computação holográfica naquela região do país. Olhou ao longe, muito além dos limites murados da cidadela. Os campos em primeiro plano estavam cobertos de miúdas flores amarelas nascidas muito depois da grande seca. Depois dos campos, onde a vista quase não alcançava, nas fazendas comunitárias de criação de búfalos, os campos de pastagem irrigada eram muito verdes.
Ele era um belo homem, tinha cabelos e olhos negros e a pele muito branca. Vestia-se, invariavelmente, de preto, como a maioria dos homens de sua idade. Diferenciava-se deles pelos acessórios: usava uma fina corrente de prata, um fio quase imperceptível, da qual pendia um minúsculo medalhão esculpido caprichosamente com a figura de um dragão. No dedo médio da mão direita usava um anel também de prata com uma pedra de cor azul marinho encravada, cuja laboriosa lapidação oval atraía o olhar apesar de minúscula. As duas jóias eram símbolos da irmandade a qual pertencia.
Petrus pensou em Sophia, sua amada. Viveu com ela desde a adolescência até aqueles anos de incoerência e medo nas três últimas décadas. Um tempo que nomearam como ensaio do fim do mundo.
Primeiro veio a “era do transgênico”. Tempos difíceis, durante os quais, sementes transgênicas substituíram as orgânicas por toda a terra cultivável até se tornarem proibidas. Isso só aconteceu porque os mesmos laboratórios que as disseminaram extraíram e salvaguardaram a célula germinal dos alimentos orgânicos cultiváveis. Então, aos poucos, os transgênicos foram sendo consumidos por pragas ecológicas criadas por filiais clandestinas dos mesmos laboratórios. Os órgãos de Estado responsáveis pela transição não divulgaram que a mudança no consumo de alimentos transgênicos para alimentos orgânicos ocasionaria crises de abstinência nos mais jovens.
Sobreveio, então, a “era das nascentes” quando a água passou a ser considerada riqueza. Os aquíferos, reservatórios intocados no subsolo dos continentes, definiram um novo poder mundial. O país atingiu um novo patamar no ranking dos países ricos e pôde mapear seu território em busca de mais água potável. Assim, o governo marcou, cercou e guardou cada vertente ou nascente perene, para que o entorno delas permanecesse intocado em raio de quilômetros considerado seguro, apropriando-se de hectares de terra em benefício do Estado.
A última foi a década do “paraíso induzido”. Uma catástrofe planetária em ondas climáticas vindas do sul: primeiro foram chuvas torrenciais e granizos que inundaram e gelaram a terra; depois, secas intermináveis que desertificaram extensas áreas. Essa catástrofe climática foi desencadeada por uma sociedade internacional de cientistas do tempo que, num delírio de perfeição, tentou induzir um clima perfeito a partir de experiências realizadas em laboratórios sediados no pólo sul.
Foi no início dessa última década que uma lenda veio a público na rede mundial de computadores. A existência de uma chave de portal que daria acesso a um novo Éden. Sophia era um dos sujeitos empenhados nessa busca. Ela passou anos tentando decifrar a linguagem que a levaria às figuras, cuja disposição engendraria um signo que servia como chave do portal. Então, desapareceu numa madruga ainda escura e fria.
Petrus afastou-se da parede, estava exausto, os olhos ardiam, as mãos tremiam, era um misto de esperança e desespero. Há três meses, havia encontrado pistas na linguagem que Sophia usava no seu trabalho como designer de interface gráfica. Descobriu a linguagem cifrada, criada a partir da antiga linguagem fonética usada pelos internautas do início do século e figuras de cartas de um game dessa mesma época. Essa era uma linguagem cibernética criada pela irmandade, a qual agora Petrus pertencia. Nessa linguagem segredos eram revelados; preconizavam caminhos incomuns, embora, não afirmassem como já trilhados.
Petrus movimentou-se pela sala, parou no centro abrindo no espaço uma janela holográfica. Com gestos rápidos, nela abriu vários ambientes até chegar ao seu objetivo final. Um espaço dividido para inserir as doze partes do signo que servia de chave. Ao inserir a última, um êxtase tomou conta do corpo de Petrus.
Corpo e mente vaguearam pelo espaço onde nada existia; nem o ardor do sol, nem o desejo dos amantes, apenas uma pálida luz azulada. Uma nostalgia infinda apoderou-se de Petrus ao ver-se só, caminhando numa trilha sem sombras à margem do leito de um rio, onde corria um espesso líquido de brilho prateado. Na superfície lisa, uma ondulação ocasional quebrava languidamente na margem escura com brilhos ocasionais.
O caminho parecia se desfazer numa reta e, um pouco mais adiante, num objeto sólido como um molhe a se projetar sobre o rio. Não havia mais nada visível além do fim do molhe. Mas havia um som lento, suave e regular lá fora, no invisível. Petrus sentou-se e esperou. Então, o barco apareceu.
O velho barqueiro aproximou-se do molhe e se comoveu com a esperança nos olhos de Petrus. Não houve necessidade de falar. Estendeu a mão e recebeu, no bojo de seu barco de titânio, o homem em busca da mulher amada. Assim, navegando juntos, o barqueiro de olhos claros e úmidos e o viajante com olhos de esperança chegam à margem visível, às portas de uma cúpula translúcida. Petrus despede-se do barqueiro e desce para a praia de areias brancas, sem que o barco balance no espesso líquido.
Antes do barqueiro desaparecer no invisível, a porta abre-se ao toque suave da ponta de seus dedos. Dentro da cúpula, estava amanhecendo. Uma ampla luz doura a planície sem fim que se estende ondulando suavemente. Embora houvesse grandes árvores, a maior parte era coberta por relva baixa numa variedade infinita de tons de verde e matizes dourados. Era primavera e das minúsculas flores emanam delicados perfumes, das grandes árvores que dobram seus galhos ao alcance da mão pendem frutos maduros.
Ele despe-se e caminha sob a cúpula sem olhar para trás. O homem descoberto não sente frio, sede, fome ou cansaço, apenas uma morna embriaguez. Seus passos trilham um caminho sem marcas humanas. Após uma jornada, cuja duração não pensou em determinar, ouve o barulho de um mar batendo nas rochas de um penhasco.
O homem permanece parado por alguns instantes, cheira o ar, ergue a cabeça com o lábio superior voltado para dentro, e depois, como se cerrasse as narinas, respira fundo pela boca. Ele intercepta o cheiro da mulher amada. Orientando-se pela trilha deixada pelo seu cheiro, encontra-a na margem daquele mar, na união dos dois elementos...
Zélia Viana Paim
Imagem/Foto de Zélia Viana Paim

Um comentário:

  1. Uma porta ciberinternética para um mundo além desta dimensão? Uau! Onde anda essa cabecinha? Bem legal!!
    bj

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