segunda-feira, 29 de agosto de 2011

No Terraço Circular

Carma vivia há mais de cento e cinquenta anos, não sabia mais ao certo quantos porque já havia perdido a conta de seus dias. Ela esperava ver o final dos tempos; no entanto, secretamente, desejava sobreviver a ele e viver eras sobre eras.
Muitos eram os seus anseios relacionados ao devir, um deles era que a sucessão de dias, horas, minutos e segundos que encerram o homem no seu exíguo viver não existisse. Outro, que a inveja associada ao ódio, ao prazer na adversidade do próximo, a aflição em relação à felicidade alheia fosse erradicada. Quase desejava prever um mundo ideal, onde não haveria causa para fome ou pranto.
A face de Carma era cortada por mil rugas finas que lhe estreitavam os olhos claros. No entanto, ainda tinha as mãos e as pernas fortes, e a pele cor de cuia possuía um brilho natural como o das indígenas. Seus dias preferidos eram os dias claros, quando a aurora levantava-se no mar oriental, oferecendo generosamente sua luz ao mundo. Suas roupas eram da cor das pedras, das folhas, dos troncos e dos musgos, mimetizando com o ambiente ao redor.
Ela vivia no alto de uma montanha, numa espécie de terraço circular, de onde avistava todo o horizonte. Era um lugar inacessível por vários motivos, não apenas para aquele que não soubesse andar sobre rochas imensas, saltando sobre os espaços entre uma e outra. Em todos aqueles incontáveis anos, poucos se atreveram a passar além da primeira pedra que fechava o imperceptível caminho que serpentava a montanha.
Ao pé da escada de pedras, o simples curioso sentia sua alma devassada, obrigando-o a recuar em seus passos. Só o crente na existência de seres tão antigos como o princípio dos tempos ultrapassava essa espécie de portal. Esses poucos que chegavam até o topo juraram ter visto um ser fugidio e resplandecente seguir seus passos por todo caminho de pedras.
Lá, longe da morte e da guerra, vivia Carma com o filho Jonas. Ele tinha a face indecifrável, do mesmo modo o número de anos que já tinha vivido. Sua aparência era a de um ser mitológico. Um centauro, no dizer de sua mãe. Se ela não soubesse que era nascido de suas entranhas diria: uma cria de homem e bicho de cascos.
Os cabelos de Jonas eram de um crespo graúdo, o bigode fino contornava os cantos da boca e o cavanhaque terminava em uma fina trança abaixo do queixo. Sua face era quase negra e tinha as mãos e os pés encardidos da terra e do verde das plantas. Seus dias preferidos eram os de chuva, quando, então, andava pela montanha assobiando uma música que só ele ouvia.
Carma ensinou Jonas a não matar ou fazer matar, roubar ou fazer roubar, falsear a medidas das coisas concretas ou abstratas, apartar os pássaros de seus ninhos ou as crias de suas mães. Ensinou-o a ouvir o rumor de armas e a não ultrapassar a linha tênue e de cor igual a nenhuma outra que separava um mundo de outro mundo.
Jonas lembrava Jacinto, o único homem que Carma muito amou. Ele havia morrido em uma das primeiras guerras de todo o seu tempo vivido até então. Sua morte não foi por ter sido soldado ou por tomar parte em algum exército, mas por estar cansado de fugir das forças que queriam a arraia miúda para servir como ponta de lança em batalhas perdidas. Jacinto morreu porque não teve forças para escapar de mãos jovens e trêmulas que seguravam baionetas sedentas de sangue num descampado em uma noite sem lua.
No amanhecer do dia seguinte à morte de Jacinto, Carma preparou-se para abandonar o convívio dos humanos, grávida de poucas semanas. Caminhou por toda a primeira noite e muitas outras mais, querendo chegar ao tempo mais distante. Ela deu-se conta desse singular caminhar quando viu tudo passar por ela, a paz e a guerra e, novamente, a paz e a guerra. Assim foi até o amanhecer de um dia como hoje, uma manhã como esta quando se encontrou ao pé da escada de pedra que dava acesso a esse seu lugar sem tempo.
Em seu agora, via Jonas aproximar-se, balançando a cabeça, lembrando certa vez em que estava com Jacinto. Ele, em sua posição preferida, sentado sobre seus calcanhares, muito sério, macerando na palma de uma das mãos o fumo recém cortado, matutava. Este era um ato muito mais profundo do que o pensar, era como se outro ser, mais sutil, pensasse por Jacinto. Ao cabo de algum tempo, lhe dissera baixinho, como se contasse o último segredo da vida:
- Tenho matutado... Deus está nos joelhos e no alto da cabeça, bem na moleira. Por isso, pra fazer uma prece é preciso ajoelhar na terra e manter a cabeça como um prumo... Decerto, assim, fez Cristo.
Carma pensou em como alguns acontecimentos como este ficaram gravados tão nitidamente na retina. Levantou-se do lugar onde estava sentada, colheu um ramo de funcho que colocou atrás da orelha e uma folha de melissa que colocou entre os dentes, mascando suavemente até sentir a seiva doce na língua. Pensou na mãe, na avó e na mãe desta. Seus homens, também, haviam morrido de morte violenta.
Por muito tempo, não pensara nestes acontecimentos, esquecera que a história de sua gente era a sua história. Lembrava agora o mistério insolúvel envolvendo a morte de seu bisavô; a morte explícita de seu avô degolado em praça pública; a morte de seu pai numa briga de bêbados que não era a dele. Essas eram mortes consideradas pouco dignas naqueles tempos bárbaros. Ao contar a Jonas, ele respondeu:
- Assim é a vida e suas criaturas - sentando sobre seus calcanhares, enrolando entre os dedos a trança que pendia de seu queixo.

Zélia Viana Paim
Imagem  Peabiru_Garuva (PR)

domingo, 21 de agosto de 2011

Poço dos Espíritos

Era uma cidade minúscula à beira de um rio estreito, profundo e ceifador de vidas, tinha poucas ruas, doze na direção norte-sul e vinte e quatro na direção leste-oeste. De qualquer ponto da cidade onde o morador ou visitante se encontrasse poderia avistar os campos ao redor. Era um quase nada de cidade, mas carregava uma sina trágica de mortes e almas penadas.
Os mais velhos diziam que a cidade se formou devagar, ficou muito tempo sem nome. Os moradores das fazendas ao redor, chamavam o lugar de vila, como se, na verdade, não quisessem ninguém ali ou, então, cidade alguma ali enraizasse.
A vila recebeu um nome, Poço dos Espíritos, e começou a tomar pé, com a chegada dos padres jesuítas. Mesmo assim, cresceu a passos lentos e conservadores, dividida em duas: uma, a cidade alta, sede do poder civil e religioso e das residências dos proprietários rurais, que se formou em torno da praça da igreja e do colégio.
Na outra parte, a cidade baixa, onde Cândida morava, se desenvolveram as atividades comerciais e se fixaram as casas dos profissionais que aprenderam seu ofício com os jesuítas: os ferreiros, os marceneiros, os curtidores, os oleiros. A cidade baixa também recebeu aqueles que vieram depois, os turcos das casas de tecidos e miudezas, os caixeiros-viajantes dos armazéns de secos e molhados. Esta parte da cidade se formou em torno de si mesma.
A vila depois da chegada dos jesuítas, antes de se tornar Poço dos Espíritos, teve seus caminhos realinhados. Eles traçaram novas ruas, retas e largas, no seu desejo de ordenar o espaço, na sua preocupação em manter o lugar adaptado à distribuição dos misteres sumamente importantes para o bom andamento da futura cidade.
Embora os jesuítas comandassem, arbitrariamente e com sucesso, o traçado das ruas e depois a ordem na cidade e, até mesmo, a história pôde ser dirigida, ela também aconteceu à revelia da vontade dos jesuítas de ordenar o espaço e as mentes. Foi assim que, na infância de Cândida, a cidade se armou e seus filhos guerrearam por ideais divergentes.
Roubando à lembrança esse tempo vivido, Cândida não sabia precisar quanto tempo demorou desde a notícia da primeira embosca e da última traição até Poço dos Espíritos se tornar o destino final de tanto medo e tanto ódio. Foram dias de luta, entre parentes e vizinhos, que se desenrolaram nos pátios, nos becos, nas ruas, nas praças, nos arredores.
Depois que as balas terminaram, que os braços se cansaram de brandir adagas e cortar gargantas, depois que todos os que estavam fadados a morrer até aquele último dia morreram, as mulheres destrancaram as portas e saíram às ruas, recolheram os corpos e prantearam seus mortos com amargura.
Cândida que tinha ficado fechada no porão junto com suas irmãs teve seus sentidos aguçados para sempre. O motivo talvez tenha sido o silêncio profundo no qual estava imersa, quebrado apenas pelo som dos passos, tiros, arquejos de morte, últimos suspiros e pelos barulhos que só no escuro se propagam.
Desde, então, porém, ela nunca mais pôde ficar numa peça com janelas fechadas. Mesmo se o frio fosse cortante e os passos andassem quebrando a geada pelos caminhos no inverno do tempo, Cândida procurava uma fresta qualquer para que pudesse sentir no rosto um sopro do vento por mínimo que fosse.
Depois das lutas, dos velórios, dos enterros que encheram o cemitério de covas rasas e túmulos complexos, a morte se esqueceu de voltar a Poço dos Espíritos. Dias e noites, meses e meses, anos a fio, durante longo tempo ninguém mais morreu por lá. As sombras não se enriqueciam de novas almas e o cemitério jazia como um canto da cidade sem utilidade nem função.
Em contrapartida, a população triplicou, muitas crianças vieram ao mundo, mulheres que pensavam não serem mais férteis, as casadas de muito, as casadas de pouco e as solteiras pariram, como se todas tivessem que provar da fertilidade de seu ventre ou repovoar a cidade. Cândida, também, casou e teve seus filhos.
Então, quando ninguém esperava mais, houve a primeira morte. Uma mulher jovem de vinte anos apenas, depois de comer talhadas de melancia, caiu ou foi jogada da margem mais alta do rio e morreu afogada num poço, que diziam sem fundo. A cidade custou a crer nessa morte.
Os moradores puseram-se a rondar, dias seguidos, as águas negras do rio, procurando ouvir notícias do paradeiro da mulher no murmúrio das águas, mas elas nada lhes segredaram. Afinal, aquele sempre havia sido um rio traiçoeiro de águas negras e frias, de lamentações e memórias perdidas. Quando, enfim, as águas devolveram o corpo, a barriga da defunta estava dura como pedra e os cabelos penteados em duas tranças perfeitas que mãos humanas não puderam desfazer.
Cândida, não se surpreendeu com o acontecido, pois havia sonhado durante a noite com um caixão negro seguido por um cortejo sem fim que caminhava pelo leito seco do rio em total desalento. Nas margens, os salgueiros debruçavam-se tristemente, como se chorassem a própria solidão à passagem das almas cabisbaixas dos mortos da cidade de Poço dos Espíritos.
Zélia Viana Paim