domingo, 21 de agosto de 2011

Poço dos Espíritos

Era uma cidade minúscula à beira de um rio estreito, profundo e ceifador de vidas, tinha poucas ruas, doze na direção norte-sul e vinte e quatro na direção leste-oeste. De qualquer ponto da cidade onde o morador ou visitante se encontrasse poderia avistar os campos ao redor. Era um quase nada de cidade, mas carregava uma sina trágica de mortes e almas penadas.
Os mais velhos diziam que a cidade se formou devagar, ficou muito tempo sem nome. Os moradores das fazendas ao redor, chamavam o lugar de vila, como se, na verdade, não quisessem ninguém ali ou, então, cidade alguma ali enraizasse.
A vila recebeu um nome, Poço dos Espíritos, e começou a tomar pé, com a chegada dos padres jesuítas. Mesmo assim, cresceu a passos lentos e conservadores, dividida em duas: uma, a cidade alta, sede do poder civil e religioso e das residências dos proprietários rurais, que se formou em torno da praça da igreja e do colégio.
Na outra parte, a cidade baixa, onde Cândida morava, se desenvolveram as atividades comerciais e se fixaram as casas dos profissionais que aprenderam seu ofício com os jesuítas: os ferreiros, os marceneiros, os curtidores, os oleiros. A cidade baixa também recebeu aqueles que vieram depois, os turcos das casas de tecidos e miudezas, os caixeiros-viajantes dos armazéns de secos e molhados. Esta parte da cidade se formou em torno de si mesma.
A vila depois da chegada dos jesuítas, antes de se tornar Poço dos Espíritos, teve seus caminhos realinhados. Eles traçaram novas ruas, retas e largas, no seu desejo de ordenar o espaço, na sua preocupação em manter o lugar adaptado à distribuição dos misteres sumamente importantes para o bom andamento da futura cidade.
Embora os jesuítas comandassem, arbitrariamente e com sucesso, o traçado das ruas e depois a ordem na cidade e, até mesmo, a história pôde ser dirigida, ela também aconteceu à revelia da vontade dos jesuítas de ordenar o espaço e as mentes. Foi assim que, na infância de Cândida, a cidade se armou e seus filhos guerrearam por ideais divergentes.
Roubando à lembrança esse tempo vivido, Cândida não sabia precisar quanto tempo demorou desde a notícia da primeira embosca e da última traição até Poço dos Espíritos se tornar o destino final de tanto medo e tanto ódio. Foram dias de luta, entre parentes e vizinhos, que se desenrolaram nos pátios, nos becos, nas ruas, nas praças, nos arredores.
Depois que as balas terminaram, que os braços se cansaram de brandir adagas e cortar gargantas, depois que todos os que estavam fadados a morrer até aquele último dia morreram, as mulheres destrancaram as portas e saíram às ruas, recolheram os corpos e prantearam seus mortos com amargura.
Cândida que tinha ficado fechada no porão junto com suas irmãs teve seus sentidos aguçados para sempre. O motivo talvez tenha sido o silêncio profundo no qual estava imersa, quebrado apenas pelo som dos passos, tiros, arquejos de morte, últimos suspiros e pelos barulhos que só no escuro se propagam.
Desde, então, porém, ela nunca mais pôde ficar numa peça com janelas fechadas. Mesmo se o frio fosse cortante e os passos andassem quebrando a geada pelos caminhos no inverno do tempo, Cândida procurava uma fresta qualquer para que pudesse sentir no rosto um sopro do vento por mínimo que fosse.
Depois das lutas, dos velórios, dos enterros que encheram o cemitério de covas rasas e túmulos complexos, a morte se esqueceu de voltar a Poço dos Espíritos. Dias e noites, meses e meses, anos a fio, durante longo tempo ninguém mais morreu por lá. As sombras não se enriqueciam de novas almas e o cemitério jazia como um canto da cidade sem utilidade nem função.
Em contrapartida, a população triplicou, muitas crianças vieram ao mundo, mulheres que pensavam não serem mais férteis, as casadas de muito, as casadas de pouco e as solteiras pariram, como se todas tivessem que provar da fertilidade de seu ventre ou repovoar a cidade. Cândida, também, casou e teve seus filhos.
Então, quando ninguém esperava mais, houve a primeira morte. Uma mulher jovem de vinte anos apenas, depois de comer talhadas de melancia, caiu ou foi jogada da margem mais alta do rio e morreu afogada num poço, que diziam sem fundo. A cidade custou a crer nessa morte.
Os moradores puseram-se a rondar, dias seguidos, as águas negras do rio, procurando ouvir notícias do paradeiro da mulher no murmúrio das águas, mas elas nada lhes segredaram. Afinal, aquele sempre havia sido um rio traiçoeiro de águas negras e frias, de lamentações e memórias perdidas. Quando, enfim, as águas devolveram o corpo, a barriga da defunta estava dura como pedra e os cabelos penteados em duas tranças perfeitas que mãos humanas não puderam desfazer.
Cândida, não se surpreendeu com o acontecido, pois havia sonhado durante a noite com um caixão negro seguido por um cortejo sem fim que caminhava pelo leito seco do rio em total desalento. Nas margens, os salgueiros debruçavam-se tristemente, como se chorassem a própria solidão à passagem das almas cabisbaixas dos mortos da cidade de Poço dos Espíritos.
Zélia Viana Paim

Nenhum comentário:

Postar um comentário