Cronistas antigos contaram que a cidade chamada Arvoredo
desapareceu da face da Terra por obra do desatino completo de seus moradores.
Arvoredo era a última cidade localizada no extremo do país,
distante pouco quilômetros da margem que delimitava o continente. A cidade
sempre foi pequena, não só pelo espaço físico que abarcava, mas a mentalidade
de seus habitantes também era tacanha. Assim os qualificaram os cronistas da
época por delicadeza ou bondade.
Nos primórdios da cidade, seus fundadores traçaram ruas
retas, que se cortavam em ângulos retos e o desenho das quadras se aproximava
do tabuleiro de xadrez. As calçadas foram pontuadas com mudas nativas, e as ruas largas
receberam no canteiro central mudas de magnólia branca, orgulho dos cidadãos de
Arvoredo.
A cidade cresceu pouco, os pioneiros morreram e as gerações
passaram como folha ao vento. Durante muitos anos, nada foi construído ali,
nenhuma calçada ou rua, nenhum galpão ou casa, nenhum muro ou cerca, nem mesmo
um poço artesiano, que, nos primórdios, também era o orgulho de cada morador.
O governo também não mudava; apenas se alternava entre duas
famílias, os Alonso e os Garcia. Nem a razão para esse continuísmo era
questionada. Acontecimentos, que não convém trazer à tona, levaram os seus
concidadãos a pensar: “nada mais natural, pois eles são os donos de quase toda
Arvoredo”.
A maioria dos moradores de Arvoredo tinha um aspecto cansado e
triste. A pele enrugada e seca, os cabelos opacos, os olhos baços, os lábios
contraídos. Andavam com paços miúdos e rápidos, sem tempo para um dedo de
prosa. Pareciam coelhos de estimação de duas Alices, muito atarefados em
compromissos urgentíssimos e inadiáveis, ou, simplesmente, assustados.
Fato é que os habitantes se acostumaram com a cidade mal cuidada,
como se ela não fosse deles. O mato crescia nas ruas, e o lixo acumulava-se nas
sarjetas. Na época das chuvas, os ratos, ratazanas e outros bichos menos
nojentos socorriam-se, boiando em cima dos entulhos carregados pela água suja,
que rolava pelas ruas e escorria cidade abaixo rumo ao rio assoreado.
Tal cenário contrastava com a casa bem cuidada de alpendre alto,
que exibia em sua fachada duas janelas amplas, como grandes olhos voltados para
a cidade. A porta avantajada era o orgulho dos proprietários, feita de um único
tronco de cedro rosa, entalhada com cachos de uva e hortênsias que rodeavam um
brasão com as letras A e G entrelaçadas. Essa era uma casa de comércio, onde os
moradores de aspecto cansado e triste trabalhavam. Facas, facões, serras,
machados eram os produtos vendidos, aos quais se somava a grande novidade da
época, a motosserra.
Desde que o primeiro dos Alonso havia assumido o poder, mal
clareava o dia, uma voz anônima suave e envolvente bombardeava os cidadãos com
slogans sobre a excelência do seu sistema de governo. Os cidadãos de Arvoredo
não se questionavam com desdobramento inexplicável do discurso que se produzia
neles, nem sequer se ouviam repetindo as mesmas palavras ditas.
Os cronistas contaram que o desatino começou quando a mesma
anônima voz passou a propalar, em decibéis apropriados, do alto-falante
instalado em altíssimo poste no centro da praça, as maravilhas proporcionadas
pelo uso da motosserra. A voz flutuava por todos os lados, dissolvida no ar que
respiravam. Era a verdade de Arvoredo; qualquer sentimento de hostilidade seria
inútil, ou mesmo impensado.
Então o discurso e os fatos fundiram-se. Um lote de terra arborizado
teve suas árvores cortadas em pequenas toras de metro e meio. Em questão de
horas, aquela parte da Terra estava limpa de frondosas espécies, sob o olhar
entorpecido dos espectadores. Nenhum deles jamais questionou o poderio
desenfreado do homem armado
contra a árvore.
Certo dia, a estranha febre, de que falaram os cronistas,
alastrou-se. Principiou quando todos os homens adquiriram a própria motosserra,
cujo pagamento, dividido em incontáveis vezes, pesava em seus parcos ganhos.
Mas o peito de cada um estufava como o de um sapo cururu a um simples olhar
para a máquina. Sentiam-se poderosos alçados de simples homens ao status de
proprietários da máquina.
Os fins de semana passavam num afã incansável. Principiaram pelo
corte das araucárias centenárias, depois pelo corte dos eucaliptos plantados há
quinze anos. Cortaram as árvores nativas: os mognos, os angicos, as aroeiras,
os ipês e os cedros; a seguir, cortaram as árvores frutíferas: as laranjeiras,
os pessegueiros, os limoeiros, as goiabeiras, nem as parreiras escaparam; por
último, derrubaram as magnólias. A cada semana a derrubada ia mais longe.
Segundo o que contaram os cronistas, demorou um tempo
considerável, mas não restou uma árvore sequer nos pátios, nos terrenos
baldios, nas ruas, nas praças, nos campos, nas margens do rio e dos córregos do
município inteiro. À medida que
as árvores tombavam os animais se afastavam dos homens e do barulho. Os gatos
foram os primeiros, seguidos pelos cães, galinhas, vacas de leite e suas crias.
A cidade parecia mais limpa sem árvores. A limpeza era glorificada
pela voz anônima e suave. Todos sorriam uns para os outros satisfeitos,
passaram a andar com a cabeça erguida, com paços mais lentos, reuniam-se em
grupos e conversavam sobre a transformação. O olhar se estendia ao longe sobre
a terra nua como uma chaga, alcançando o horizonte e mais além, afirmavam que
podiam ver a curvatura da Terra.
Os compradores de madeira chegaram das regiões próximas e
distantes, comboios de caminhões saíam da cidade, carregados de troncos. Os
habitantes de Arvoredo encheram os bolsos, antes vazios. Tempos depois da venda
da madeira, o clima da região alterou entre calores infernais durante o dia e
frios glaciais à noite.
Os moradores passaram a andar cada vez mais rapidamente, com a cabeça
baixa, quase enterrada no peito. O sol violento e as escassas sombras das casas
forçavam aqueles que se arriscavam a sair às ruas a andar de lado rente as
paredes e muros. De humano, não se ouvia um balbucio. De bicho, nenhum som
sequer, nem de pássaro, nem de sapo, nem de grilo. Um silêncio sepulcral
reinava em Arvoredo.
Os habitantes notaram, com estranheza, a falta que sentiam de
coisas bizarras como o farfalhar das folhas à passagem de delicada brisa; os
galhos batendo nas vidraças, embalados pela chuva; o hábito dos pássaros, ao
amanhecer, voarem baixo ao redor das árvores do pernoite; o tremeluzir das
gotas de orvalho nas pontas das folhas antes de caírem ao solo; o perfume das
araucárias e dos eucaliptos. Entre todas as estranhezas, sentiam mais a falta
do perfume das gigantescas flores das magnólias.
Os cronistas contaram que ninguém soube jamais explicar os motivos
que levaram aos acontecimentos que se seguiram. Os habitantes começaram a
sangrar pelas narinas; primeiro, foram os Alonso; depois, os Garcia,
contagiando as pessoas que cuidavam deles. O estranho sangrar se alastrou pelas
famílias inteiras de Arvoredo que não puderam fugir. Não houve tratamento que
impedisse o sangrar, foi como se o organismo de cada um não pudesse, ou não
quisesse mais, conter em si a própria seiva.
Aqueles que se mantiveram em pé por último tiveram que enterrar os
mortos em vala comum, não havia madeira nem tempo para esperar mais caixões.
Por fim, quando não restava mais morador em Arvoredo, a tarefa de enterrar os
corpos insepultos coube aos habitantes da cidade vizinha, não por se importarem
com os fatos ocorridos, tampouco por solidariedade humana, mas por não
suportarem mais o mau cheiro que tornava o ar ainda mais irrespirável na
região.
Os cronistas contaram que, muito tempo depois de tudo ter passado,
a montanha de terra que cobria a vala comum esquentou, expelindo um vapor
formado pela decomposição dos corpos. O vapor subiu como um fio escuro ligando
a Terra ao Céu. Pairou sob a região e aos poucos condensou, formando nuvens
espessas e imensas que se derramaram em chuva ácida e contínua por dias. O nada
que restava de vida no município de Arvoredo desfez-se enfim. O solo do
município apodreceu. Nada mais nasceu naquela parte da Terra onde, outrora,
localizava-se a cidade de Arvoredo, contaram os escritos dos antigos cronistas.
Zélia Viana Paim
Imagem Magnólia Grandiflora
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