terça-feira, 26 de abril de 2011

Parte I - Cotidiano

Bina acordou cedo, antes das cinco horas, pretendia pegar o ônibus às seis e meia. Tomou um café forte sem açúcar e saiu para o ar seco e frio do sábado. Bateu a porta sem querer, não pretendia acordar o pai. O vento começou quando seus pés calçados com botas gastas tocaram a terra. Setembrina era o seu nome, por obra da parteira que a ajudou a nascer no dia em que começou a ventania há dezesseis anos. A mãe de Bina havia parido tantos filhos, que não sabia qual nome lhe dar.
– Setembrina é um bom nome – dissera a parteira para a mãe de Bina e emendara: – No fim, ela vai acabar sendo Bina mesmo, que é muito mais bonito, mas não é nome de gente deste mundo.
A estação rodoviária estava quase vazia quando Bina chegou.
A um canto, à esquerda, uma mulher guarani, rodeada de cestos de vime com coloridos desenhos, de tamanhos e formatos variados, parecia estar acordando no improvisado abrigo noturno. Um menino guarani de mais ou menos cinco anos que saltitava por ali ofereceu a Bina um sincero sorriso, como se fosse o anfitrião de um encontro misterioso engendrado pelo destino.
No canto oposto, sentada em um banco de madeira, uma mulher jovem acendeu um cigarro no outro recém findo e tragou com prazer ostensivo, soltando uma baforada farta e branca que se desfez ao vento.
Bina sentou-se em outro banco igual ao dela, lustroso pelo uso, a uma distância considerável da jovem mulher.
O silêncio era quebrado por latidos distantes, pelo barulho de um saco de plástico branco que voava em redemoinho e pelo rasque-rasque dos chinelos do menino guarani no piso de cimento.
Algum tempo depois, chegou o primeiro dos três soldados que se seguiram. Os três retardatários caminhavam se empurrando, rindo e falando alto.
– Pensei que tu tinhas ficado detido, cara – falou um dos que chegavam.
– O tenente falou com o sargento, livrou a minha cara. Foi tudo brincadeira do tenente, que me mandou entregar uma florzinha pro sargento.
Todos gargalharam muito, ao ponto de se engasgar, tossir e cuspir para chão. O que encantou o menino guarani. Voltaram a conversar e se calaram ao mesmo tempo, sem antes falarem mal do tenente e chamarem o sargento de florzinha.
Enfim, as portas da rodoviária se abriram, todos se dirigiram aos guichês onde duas mulheres vendiam as passagens. Uma das mulheres, com o controle remoto, mudava os canais da televisão na parede em frente.
Enquanto o ônibus azul e branco da empresa Nova Fronteira estacionava, chegou mais um passageiro.
Era um senhor de mais ou menos setenta anos. Usava bombachas, camisa branca, botas, guaiaca e carregava uma mala de garupa com listras azuis, vermelhas e brancas. Era seu João, dono da granja Luzia.
Com as passagens compradas, rumaram para seus lugares no ônibus, em um ritmo solene, como se fosse uma dança com os mesmos gestos longamente ensaiados.
Quando o ônibus partiu, o menino guarani ficou olhando desolado, como se lhe roubassem velhos amigos, conhecidos de longa data, outras eras, outros mundo, convivas da sua festa imaginária.

Parte II - Conversa Séria


No ônibus, todos os passageiros, menos Bina e a jovem fumante, empenharam-se em uma conversa séria, apropriada para aquela hora.
Depois de alguns quilômetros rodando em uma estrada poeirenta e esburacada, a primeira parada.
O cobrador desceu para colocar no bagageiro os arreios do peão, que fizera sinal para o ônibus parar.
Um homem moreno entrou, era um cavaleiro sem montaria, estava vestido com indumentária própria para trabalho pesado com o gado, mantinha amarrado na cintura um tirador surrado que ostentava diferentes marcas negras feitas com ferro em brasa.
João, o velho granjeiro, alinhavou uma prosa com o recém chegado:
– Bom dia, meu rapaz! Voltando das lidas campeiras da semana?
– É, estava marcando o gado do coronel Pavão.
– Vi teu irmão mais novo, o Tiago. Estava armado, andava caçando. Ainda brinquei com ele, disse: tamanho homem caçando, isso é coisa de guri pequeno que não tem o que fazer. Ele não me respondeu.
– É mania! – respondeu o recém chegado sentando no banco ao lado – Ele e o Mano Velho do finado Antônio, rasparam tudo: mato, campo e toca. O que era bicho eles caçaram: tatu, capivara, lebre, preá, jacaré, pomba – continuou o peão.
Nova parada interrompeu a conversa.
Uma senhora, de uns oitenta anos ou mais, e uma mulher jovem e forte com um filho dormindo nos braços entraram no ônibus. A cabeça loira estava recostada no ombro da mãe e da boca aberta escorria uma baba cristalina.
Ambas andaram pelo corredor do ônibus até sentaram lado a lado nos últimos bancos. O menino acordou e chorou quando a mãe sentou-se, mas esta logo lhe deu o seio, sossegando a criança.
– Então, dona Maria, andava lá no Pedro? Quem haveria de dizer, não é dona Maria? Aquela traidora! Uma criatura nascida e criada entre a gente. Quem poderia imaginar uma coisa dessas? – perguntou a mãe do menino num só fôlego para a velha senhora.
– É triste! – respondeu a velha senhora.
– Abandonar tudo desse jeito. Deixar o marido e a filha mocinha. Dizem que a menina não quis ir quando ela mandou buscar!? Rica filha! Na certa ficou com pena do pai, largado pela mãe. – continuou a mãe do menino.
– Pois é! – respondeu a velha senhora.
Por um tempo, silêncio... Quebrado pela voz do cobrador:
– São dois reais até Campo Limpo, senhoras.

Parte III - Sonho


A conversa entre os passageiros continuou.
Bina recostou-se melhor na poltrona gasta e dormiu embalada pelas vozes cada vez mais distantes.
Sonhou.
Estava em um castelo erguido no meio de um campo de ninguém. As janelas batiam, as portas rangiam sopradas por um vento escaldante. Uma poeira fina entrava pelas frestas, como grandes pernas de um inseto gigante feitas de minúsculos pontos flutuantes. No centro de uma sala vermelha, ela dançava uma valsa solitária num rodopiar febril.
Acordou suada quando o ônibus entrava na cidade.
Os passageiros ainda conversavam.
– Chegamos!– disse o granjeiro.
– Rincão dos Butiás! Cidadezinha velha, seu João? – falou o peão.
– Esta é outra cidadezinha que está se terminando – respondeu ele.
– É! Cidadezinha ruim de emprego e, ainda por cima com esse vento sem fim – remendou o peão.
Bina sentou-se melhor, jogou para trás os cabelos de hidra, esperou que os passageiros descessem e resmungou:
– Só o que me falta é morrer neste fim de mundo, nesta cidadezinha, nesta boca escancarada que sopra o vento no mundo.
Calou-se, pensando e resmungou de novo:
– A primeira coisa que vou fazer é ir ao cemitério, visitar o túmulo de meus ancestrais... Engraçado, pensar neles agora. Todos os meus mortos estão lá. Elas em maior número que eles... Inferno! Isso sim seria uma maldição?
A velha senhora olhou tristemente para Bina, que levantava.
– E se este ônibus me levasse mesmo para uma Nova Fronteira, um lugar em que o poderoso Deus tivesse tocado com o dedo e dito quando nasci:
– Encontra-o, criatura! – murmurou Bina atrás da velha senhora.
Bina deu de ombros, arrumou a longa cabeleira ruiva, passou a mão pela roupa amarrotada, tateou a chave no bolso do jeans e as poucas moedas que restavam, saiu do ônibus e rumou para casa, tentando adivinhar o que restaria ainda de seu destino ingrato de nascer com o vento.
Mal Bina tocou com a ponta do pé a terra vermelha, o vento recomeçou. Um vento interminável que arrancava as folhas das árvores e as varria para além dos muros, das casas, dos túmulos, dos templos, da cidade, daquela região...
Zélia Viana Paim

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Conto de Fadas

Era uma vez uma mulher que deu à luz uma linda menina. Já no quarto, ao recebê-la nos braços, chorou sem conseguir conter-se. As roupas dela e da menina ficaram ensopadas, como também a fronha, os lençóis e as toalhas. As enfermeiras esgotaram seus cuidados inúteis. Chamaram a médica que havia feito o parto. A médica atestou que a razão do choro não era tristeza. Era amor. A mulher sentia-se um ser imperfeito. Questionava-se. Como pudera receber tão divina graça? Como mostrar à menina a civilização tal como era? Como, aos olhos da menina, o mundo seria justo e bom? Como faria para a menina ver um mundo diferente do mundo que a civilização inventara? Depois de parar de chorar e de muito pensar, decidiu. Ensinaria à menina tudo que de mais importante havia aprendido. A existência de outra natureza. Não palpável, não apreensível, nem densa. Foi assim que a menina, desde os primeiros dias de vida, ouvia a mãe contar histórias de outros mundos... 
[...]
A rainha estremeceu e ficou verde de ciúmes. E daí, cada vez que via Branca de Neve seu coração tinha verdadeiros sobressaltos de raiva. Sua inveja e seus ciúmes desenvolviam-se qual erva daninha, não lhe dando mais sossego, nem de dia, nem de noite. Enfim, já não podendo mais, mandou chamar um caçador e disse-lhe:
Branca de Neve no esquife de cristal
 – Leva essa menina para a floresta, não quero mais tornar a vê-la; leva-a como puderes para a floresta, onde tens de matá-la; traze-me, porém, o coração e o fígado como prova de sua morte.
O caçador obedeceu. Levou a menina para a floresta, sob pretexto de lhe mostrar os veados e corças que lá havia. Mas, quando desembainhou o facão para enterrá-lo no coraçãozinho puro e inocente, ela desatou a chorar, implorando.
– Ah, querido caçador, deixe-me viver! Prometo ficar na floresta e nunca mais voltar ao castelo; assim, quem te mandou matar-me, nunca saberá que me poupaste a vida.
Era tão linda e meiga que o caçador, que não era homem mau, apiedou-se dela e disse:
– Pois bem, fica na floresta, mas livra-te de sair dela, porque a morte seria certa. E, em seu íntimo, ia pensando: “Nada arrisco, pois os animais ferozes vão devorá-la em breve e a vontade da rainha será satisfeita, sem que eu seja obrigado a suportar o peso de um feio crime”.
Justamente nesse momento passou correndo um veadinho; o caçador matou-o, tirou-lhe o coração e o fígado e levou-os à rainha como se fossem da Branca de Neve. O cozinheiro foi incumbido de prepará-los e cozinhá-los; e, no seu rancor feroz, a rainha comeu-os com alegria, certa de estar comendo o que pertencera a Branca de Neve.
[...]

E a menina sonhava com outro mundo, onde meninas, como a Branca de Neve, estariam a salvo de rainhas más... E sonhava.

Fim

Imagem e fragmento de texto extraídos de Contos e Lendas dos Irmãos Grimm. Trad. Íside Bonini. Ilustrações de Ramirez. São Paulo: Editora Edigraf, vol. 1, s.d.

domingo, 3 de abril de 2011

Incorpóreo


À noite, alguma coisa assustadora, um perseguidor incorpóreo seguia seus passos. A cada esquina que dobrava, a cada rua que atravessava olhava para trás tentando surpreender o perseguidor.
Inútil!
O incorpóreo era companhia constante.
Para não ficar sozinho à mercê de seus desmandos potenciais, atirava-se, então, às loucuras que, à noite, o bairro oferecia: sexo e drogas a escolher.
O dia era diferente. A presença do perseguidor sucumbia à sua luz. Embora o perseguido nem visse o dia passar. Dormia, esquecendo de comer. Esquecia também de tomar a dose de lítio diária.
Era como um fiapo de tão magro. Pele e ossos.
Com a chegada da noite, o ritual começava. Comia qualquer coisa, mas arrumava-se com cuidadoso esmero. A intenção era parecer mais moço do que seus trinta anos. Se possível, quase um adolescente imberbe.
As noites e os dias sucediam-se assim. Rumo à beira do abismo.
Chegou a um estado deplorável. Euforia e depressão alternavam-se nas noites indormidas e nos retalhos dos dias.
Acreditava-se imune a todos os interditos.
Acreditava-se condenado aos piores castigos.
A vida era uma roleta russa.
A cada noite, o incorpóreo ficava mais agressivo, por vezes sentia seu hálito morno como uma lufada de vento de uma boca de lobo. Apressava-se, então, a encontrar um desconhecido ou conhecido qualquer para passar a noite ou a maior parte dela.
As mudanças sucessivas da euforia à depressão tornaram-se a própria droga. No intervalo entre ser um deus e ser um verme, desabou o corpo franzino num vão de porta.
Sem defesas, sentiu uma mão apertar seu punho quebradiço.
O incorpóreo tornara-se corpóreo? Não!
Era um desconhecido com quem passara uma noite desesperada qualquer.
Caridosamente foi levado ao Pronto Socorro. Sua irmã médica foi chamada, transferindo-o para o Hospital de Clínicas onde trabalhava.
Por que deixará de tomar as doses diárias de lítio?
Exames e o diagnóstico: desidratação, subnutrição, anemia,... AIDS.
Chorou até as lágrimas secarem.
À noite, a luz do celular iluminou a penumbra do quarto branco no hospital, o antes perseguido buscou o nome conhecido.
O único acréscimo às palavras de praxe: – Eu caí!

Zélia Viana Paim
(em memória de um ser amado)