sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Passo em falso



Era o início da estação...
O tempo corria veloz e faminto. Os moradores na cidade ainda adormecida não assistiram a madrugada soturna que estendia seu manto pelo mundo. O dia quase não amanheceu. As cores da manhã estenderam-se e não deixaram lugar para o dia que pareceu emendar com a noite. Finas colunas de um nevoeiro cinza subiam das poças nos caminhos e se enrascavam feito amantes.
Pedro com os olhos nos sapatos úmidos e estropiados pouco se importava com o dia. Caminhava, deixando-se levar pelo sentimento miserável nascido da paixão proibida. A noite ao léu durou uma eternidade. Desejou sinceramente, depois com remorso, que uma emergência o chamasse de volta aos seus pacientes no hospital, arrancando-o daquele pesadelo insuportável povoado de imagens que procurava não ver.
Muitas vezes antes espreitara a mulher pela qual estava louco de paixão sentindo-se culpado de um sério delito, um réu prestes a ser julgado pelo pecado da carne. Mas... suportando o gume de uma lâmina encostar sua garganta, cravava os olhos em nesgas da pele branca e nua da mulher que desejava. Com a respiração suspensa aproximava-se reprimindo um gesto de afeto; ao menor movimento dela, fugia sob seus próprios passos.
No transcorrer daquela noite, depois da festa de casamento dela, caminhou solitário pelo mundo afora, arrastando o corpo massacrado pelo infame desejo. Havia decidido evitar aquela que agora era a mulher de seu irmão e guardar seu amor, como uma fera enjaulada no fundo de si mesmo. Sabia, no entanto, que havia sido um esforço inútil. Sofria encarcerado na mesma jaula, dilacerado pela fera que não ousara domar.
Mal sabem ou querem esquecer que o destino tece com um fio falso a felicidade de uns e a infelicidade de outros. Nesse enredar de vidas, tudo é passível de mutação. E, no enredo dessa ordem cósmica, eterna é a impotência dos homens frente aos (des)mandos do destino.
[...]
As horas dos dias arrastavam-se, como se os ponteiros do relógio carregassem o peso de todos os segundos marcados por eras sobre eras. Quando não estava no hospital, Pedro fugia a passos largos por caminhos inventados pelo desespero que o levava cada vez mais longe de casa, das ruas, dos últimos casebres da cidade, rumo à escuridão das noites que se sucediam iguais a si mesmas.
Então, um vento morno principiou a soprar devagar na hora mais escura de uma daquelas noites iguais. Na manhã, o vento insistia, levantando a terra em seu caminho, arrancando as folhas dos galhos das árvores, varrendo-as para os cantos dos muros, os fundos dos becos e os vãos dos portões. As portas batiam, como se fossem obrigadas a encerrar segredos para sempre.
Há meses ela disfarçava o sentimento que pouco a pouco se apoderou de todo seu ser. No início estava segura de que jamais trairia o marido. Depois percebeu que em sua alma já o traíra. O corpo era apenas instrumento do desejo que crescia nela ora como um martírio ora como um bem supremo.
Há meses o céu amanhecia encoberto como se fosse parte do cenário preparando o dilema dos dois. Durante o dia, um tom cinza uniformizava o aspecto de tudo que havia. No interminável cinza, ela não cuidou mais de esconder de si o desejo implacável que sentia.
A mata, na qual se embrenhou no encalço de Pedro, encobria desejos secretos. Encontraram-se. Sem dizer palavra, despiram-se, estenderam suas roupas no chão de folhas caídas e sobre elas se amaram. Risos, sussurros de amor, gemidos de prazer e cânticos anônimos ressoaram no espaço afora.
[...]
Era o fim da estação...
Trovões feriram o espaço aparentemente calmo. Grossos pingos de chuva molharam a terra, como se o céu quisesse chorar por toda a mágoa dos traídos. A chuva, no entanto, não preocupou ninguém. Os moradores da cidade chegaram mesmo a agradecer por aquela água generosa e abundante que, pensaram eles, haveria de fortalecer as plantações e resultaria em abundante safra.
Mas os dias e noites passaram, e a chuva aumentou até os campos ficarem alagados e as águas se avolumarem. O rio transbordou de seu leito com a violência contida durante meses. Colheitas, árvores, animais, cercas, muros, casas, estradas, pontes, tudo aquilo que restava vizinho às margens transbordadas do rio foi sendo tragado pelas águas.
Benzedeiras tentavam acalmar a tempestade nas janelas dos quatro cantos da cidade, fazendo o sinal da cruz com as palmas bentas no Domingo de Ramos. De nada adiantou, as nuvens formavam uma camada tão densa e baixa que pareciam anunciar o próprio derramamento do céu. Era novamente o dilúvio sobre a Terra. A chuva caía com furor e se tornava violentas enxurradas.
Na cidade mal dormiam nos dias e noites em que as águas tomavam conta do mundo. Os trovões ribombavam. O ar era um odor de tronco úmido apodrecido e deitado ao solo das matas. A noite era um breu. As janelas e o telhado das casas estremeciam como se um ente sem corpo se jogasse sem piedade sobre elas, querendo esmagar a todos.
Pedro mudou-se para o hospital, no socorro às vítimas nunca mais pregou os olhos; ela, se dormia, acordava com o coração aflito, cansada de sentir a presença da desgraça. Rezava terços pedindo perdão, fazia promessas de sufocar o desejo arrebatado pelo irmão do marido. O céu pareceu responder e pouco a pouco se fez o que parecia ser a paz na natureza. A chuva estancou. Mas o coração dela estava certo, o destino é voraz na satisfação de sua vontade desatinada.
À luz de lanternas e de lampiões, o irmão de Pedro comandava as frentes de trabalho na ponte que atravessava o rio que banhava a cidade. Um passo em falso... e o destino selou a sorte dele. No leito cheio do rio, ele lutou contra a violenta correnteza, mas sua coragem foi vã. A fúria das águas acabou por tragá-lo, sufocando seu último sopro de vida.
Um conhecido trouxe a notícia do seu desaparecimento. Ela não quis acreditar. A ausência da materialidade do corpo não atestava a imaterialidade da morte. Com olhos secos, ela se pôs a rondar por dias seguidos as águas barrentas do rio, procurando ouvir em seu murmúrio notícias do paradeiro dele. Mas do murmúrio das águas ouvia histórias outras que não queria escutar. Aquele era um rio traiçoeiro carregado de lamentações profundas e memórias perdidas.

Zélia Viana Paim
Imagem themes (re)dimensionado

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A mariposa


Alas de Mariposa – Anthony Ross

Valquíria decidiu ir embora da casa materna onde morava com a sua irmã Jade e o marido desta, Ludovico. A decisão era definitiva; embora, amasse e admirasse Jade, muito mais do que às outras irmãs e soubesse que ali sempre seria seu lugar, se essa fosse a sua vontade. Ela ansiava seguir o caminho, cujo traçado invisível a levaria ao seu destino final, conforme explicou à sua irmã.
Com a morte da mãe sentia-se à deriva num mar que se alternava entre calmaria e tormento, sem um farol que lhe guiasse a um porto seguro, onde pudesse salvar-se dos reveses do devir. Sem timo nem rumo, decidiu partir, confiando que chegaria ao lugar que, nesta vida, lhe fora destinado encontrar. Sete meses se passaram, desde o dia da decisão ao dia marcado para a partida. Embora isso não fosse decisão que se tomasse, pois ela sabia correr o risco de não partir jamais.
Desde que se conhecia por gente, ela sabia-se diferente das outras irmãs. Diferença que com o findar dos anos de meninice a aproximava mais e mais de sua mãe, que, por sua vez, também era diferente das outras mães. Lisa, a mãe de Valquíria, tinha permanentes no rosto um sorriso a curvar-lhe o canto dos lábios para cima e uma alegria que fazia brilhar os olhos negros como a noite.
Às vezes, a menina julgava entrever nesse conjunto, que parecia tão doce e meigo, uma ironia brutal. Esta coincidia com as noites de lua quando Jade benzia a irmã fazendo o sinal da cruz com água benta na sua testa, boca e peito à altura do coração. No instante mesmo em que se iniciava esse ritual, erguia-se outro, numa conversação, numa risada fina audível somente para Valquíria. A esse ritual secreto, que lhe preenchia de um amor imenso e que lhe aguçava todos os sentidos, ela se entregava como um instrumento musical ao seu afinador.
Entre lembrança e esquecimento, os meses de espera passaram.
Na estação de trens, Valquíria comprou passagem para a cidade em cujo nome seus olhos bateram ao buscarem um lugar na lista escrita num painel desbotado: Poço dos Espíritos. Na despedida, Jade, mais uma vez, fez o ritual de benzedura da irmã. Desta última vez Valquíria tinha lágrimas nos olhos e uma emoção que lhe apertava a garganta com mãos de ferro e afligia o peito em cujo âmago o coração batia acelerado.
O trem partiu.
A tarde era morna e a noite caía devagar nos campos, matas, rios, vilas, cidades. Nas estações de trens, embarcavam e desembarcavam pessoas. Novamente desfilavam campos, matas, rios, vilas, cidades e, nas estações de trens, embarcavam e desembarcavam pessoas. Cansada de estações que se sucediam iguais a si mesmas, dos movimentos desiguais das pessoas, do barulho e do sacolejar ritmado do trem, Valquíria trancou a porta da cabine onde viajava sozinha, cerrou as cortinas das janelas que davam para o corredor, deitou-se, dormiu e sonhou.
No sonho, seguia uma mariposa, cujo colorido das asas formava desenhos regulares, do castanho ao branco, que variavam de acordo com a mais tênue alteração de luz chegando ao lilás. Embrenhava-se por matas desconhecidas até chegar à frente de um casarão cercado por um sem par de frondosas árvores em flor. Nesse lugar, perdia de vista a mariposa e espreitva por entre as grades do portão um vulto de homem na janela.
No casarão, Augusto olhava a lua cheia que iluminava a terra, motivo de uivos e ganidos dos cães ao redor. Um vento morno percorreu mansamente o peito nu enquanto uma enorme mariposa pousou no mosqueteiro de tule do berço onde dormia a recém nascida. Augusto sorriu ao lembrar que, na sua infância, Branca, a cozinheira, lhe contara histórias sobre as mariposas.
– Estas mariposas são mulheres bruxas que se transformam e bebem o sangue de recém nascidos, sugando pelo umbigo.
Na cama, ao lado, a mãe da menina parecia dormir com um sorriso a curvar-lhe o canto dos lábios para cima. Ele julgou ver nesse conjunto, que parecia tão doce e meigo, a sombra de uma ironia. Uma sombra apenas, quase nada como no primeiro dia em que a viu.
O trem corria compassado e célere no dorso do mundo.
Na cabine Valquíria acordou com raios dourados penetrando pela fresta da janela. Foi assim que, no seu presente, as sombras douradas da fresca manhã encontraram o trem que a carregou até Poço dos Espíritos. Ao desembarcar, o silêncio assustou-a. A estação de trens estava vazia, as ruas estavam vazias, o mundo parecia vazio como o recomeço dos tempos. Então ela o viu. Longos cabelos negros, corpo esguio e olhos serenos.
– Ele é mesmo belo e parece feliz – murmurou para si mesma.
A certeza era desnecessária, porque o encantamento dela pelo cumprimento de parte seu destino sobrepunha-se.
Augusto, por sua vez, se perguntou, então, se a força dos acontecimentos no espaço e no tempo não era apenas um amontoado de coincidências. Justo naquela manhã dourada e fresca, uma figura de mulher brincou com seus sentidos e com sua razão. Por um segundo ele pensou que, bela e imóvel, ela bem poderia ser uma aparição, com o vento fazendo esvoaçar as vestes leves que delineavam o corpo perfeito.
Os dois seguiram mudos ao encontro do outro, obedecendo à força da atração que agiu sobre eles e a qual nem pensaram em resistir. Esqueceram-se de que a paixão era repentina como a morte desde sempre. Valquíria sentiu na boca o doce gosto do mel. Sorriu. Augusto por um instante julgou vislumbrar no conjunto doce e meigo a sombra de uma ironia. Por um instante pensou em retroceder ou estancar os passos que o levavam para ela.

Zélia Viana Paim

domingo, 1 de janeiro de 2012

Espanto e Névoa

Joaquim nasceu com a sina de descobrir o que a natureza havia subtraído aos humanos olhares e morrer escondido nas partes mais esquecidas da terra. Vivendo sua dita ou desdita, acerto e desacerto, ele vagaria pelo mundo percorrendo caminhos que parecia conhecer antes de ter tocado com seus pés e olhado com seus olhos mortais.
No correr dos dias, das noites e dos anos, Joaquim foi parar num lugar qualquer desolado e deserto. Enquanto seguia com os olhos vagarosos o voar de um pequeno gavião, o cavalo em que montava assustou-se com uma cobra e o derrubou. Ao cair, perfurou a coxa esquerda na ponta de um crucifixo enferrujado encravado em uma pedra semi-enterrada na terra arenosa batida pelo vento.
Joaquim pensou que morreria ali mesmo esvaído em sangue. Para morrer sossegado sem o estorvo das aves de rapina que arrancavam os olhos dos moribundos, arrastou-se até as pedras que restavam das ruínas da missão jesuítica que despontava no areal. Sentou-se e limpou o ferimento com o que restava de água, estancando o sangue o melhor que pode, deixando-se ali ficar.
Dias e noites passaram como folha ao vento. Joaquim sonhou com uma vertente de água fresca e cristalina, na qual saciava sua sede desesperada de homem sem sangue. Na manhã de um dia acordou com a fonte febril e ouviu um leve rumor de água que ecoava por trás das raízes de uma figueira brava nascida entre as pedras. Ao arrastar-se até as raízes expostas, uma dor lancinante lhe golpeou a cabeça e a coxa.
Joaquim acreditou, então, que no vão que entrevia por entre a árvore e a pedra, poderia encontrar um bom túmulo, se o barulho de água correndo fosse somente delírio. Erguendo-se, passou no espaço apertado, arranhando as costas e o peito entre raízes e pedras. O suplício se prolongou por metros.
Ao final da passagem torturante, encontrou alívio e uns poucos degraus de pedra rasos e gastos que, terra abaixo, levavam a um amplo espaço. Joaquim fechou os olhos à semi-escuridão e à dor. Esperou acalmar o latejar na ferida, enquanto suas narinas se dilataram como as de um animal farejando o ar gelado, antigo e doce.
Ao abrir os olhos, viu na parede de pedra ao lado da entrada a pequena vertente, da qual escorria um filete de água que corria por um canal fino e fundo sulcado na pedra. À sua margem, Joaquim se atirou como um demente e bebeu a ponto de afogar-se, de ter um acesso de tosse e de vomitar quase toda água ingerida.
Então um frio extremo percorreu seu corpo, gelou seus músculos e penetrou seus ossos. Joaquim sentiu a alma desprender-se de seu corpo mortal e ser levada pelo vento a percorrer os corredores do tempo interminável. A imagem de uma mulher apareceu-lhe entre quatro anjos que, sobre cuja cabeça, emborcavam uma cornucópia pejada de frutos maduros. Um enxame de abelhas, zumbindo e se movendo no ar como se um ser vivo e único, desfez a cena.
A alma fascinada pela beleza do movimento seguiu as abelhas. De repente, imenso abismo separava-a delas que continuavam a rolar no espaço como um animal mutante ou nuvem corredeira. O espanto da pobre alma foi maior quando percebeu que aquele abismo era o lugar onde deixara o seu corpo delirante. Mas o momento definitivo de abandoná-lo e tornar-se sombra não havia chegado ainda para Joaquim. A hora de espanto e névoa passou.
A noite caiu devagar e silenciosa tomando conta de tudo, até desfazer-se em dia lá fora. Um zumbido abafado acordou Joaquim. Com o coração aos saltos e o sangue pulsando nas têmporas, encostou o ouvido ao lado de uma pequena fenda na pedra que pareceu gemer ao contato humano. Encontrou a colméia repleta de mel que gotejava da pedra mais abaixo.
Joaquim sentou-se, deslizando as costas na parede áspera. Alisou o chão carinhosamente, de um lado e de outro das pernas estiradas. Com os dedos trêmulos, seguiu as rachaduras do solo. Entre delírio e lucidez, demarcou uma pedra de mais ou menos um metro quadrado.
Deixando de lado a pedra, tratou então de cuidar de si mesmo, lambeu com vagar o mel que gotejava, bebeu a água como um gato beberia, lavou e colocou mel no corte o mais fundo que podia suportar. Sentiu um cansaço imenso. Quando enfim julgou ter forças, retirou a terra do sulco que delimitava a pedra e a deslocou, ignorando as fisgadas de dor e o filete de sangue que escorria da ferida.
Sob a pedra, encontrou a tampa de uma arca finamente trabalhada em cedro, com embutidos de ouro e madrepérola e entremeados de vários relicários, pequenos espelhos e lindas pérolas, repleta de moedas de ouro.
Fechou os olhos, procurando acalmar o coração aos pulos enterrou as mãos na arca e as enchendo de moedas levou-as ao rosto como se o lavasse. Ao contato com o metal frio, Joaquim foi tomado por um frenesi, uma gargalhada sem fim que sacudia todo seu corpo. Da ferida aberta, escorreu com força um sangue vermelho, vivo, fino e doce que, em vão,... Joaquim tentou estancar.

Zélia Viana Paim
Imagem sudoeste do Rio Grande do Sul, Brasil

domingo, 4 de dezembro de 2011

A passeata, a lista e o graveto seco


Era uma vez uma cidadezinha onde os moradores sabiam por experiência própria que a um tempo de trevas sucede um tempo de luz, de clara serenidade ou de calma inquietante. Esta é a eterna lei. Essa é a certeza que provoca a melancolia nos homens.
Algures... a sombra poderia estar se movendo, tentando libertar-se de anos de cativeiro, de insuportável estagnação, monstruosa e sedenta de sangue e dor. A essência do pior que poderia constituir o ser humano vicejaria.
Essa, em tempos passados, encontrou terreno fértil em Bernardo Badoo. Quieta e silenciosa, a vida parecia aguardar a destruição que ele deixava a cada passo. Badoo era uma sombra que emergia das sombras no total anonimato com uma força inacreditável.
Na cidadezinha, deram a atenção que costumavam dar à chegada de uma nova família de moradores: nem júbilo nem desprezo, apenas a mera curiosidade moveu os moradores. A família chegou composta pelos pais e duas filhas solteironas.
Os moradores não cogitaram pensar o motivo da mudança daquele que se dizia major reformado para um lugar tão pequeno, suficientemente, guarnecido apenas por meia dúzia de soldados. Também não desconfiaram que o tal major tomasse nota dos hábitos noturnos dos moradores da cidadezinha desde que se estabeleceu com a família na casa dos sete arcos.
Badoo queria saber a que horas jantavam, quanto tempo que ficavam à mesa e a demora da conversa logo após a janta. Segundo pensava aquele homem, essas eram horas cruciais, porque, de estômago cheio, as famílias conversavam sobre seus segredos e decidiam o rumo de suas vidinhas.
Pelas sombras das noites, o major deslizava sorrateiramente, encostando o ouvido às portas e janelas das casas. Badoo maldizia as grossas portas de madeira esculpidas em baixo relevo e se extasiava frente às portas finas e àquelas com frestas. Queria ver ou ouvir por trás de cada uma delas um antro, um covil, uma corja da pior espécie.
A ânsia de encontrar alguma coisa, descobrir um segredo, um pecado, uma culpa lhe deixava a respiração ofegante e a garganta seca, obrigando-o a tirar do bolso uma garrafa de metal de tempos em tempos. Dela, arrancava com os dentes a rolha presa por um barbante, levava o gargalo à boca e sorvia seu líquido amargo com vagar. Sentia os pêlos de seus braços e nuca se eriçarem, sacudia-se como um bicho de pêlos molhados.
Enquanto espreitava os moradores, arquitetava as denúncias que faria depois de dar por acabada a diligência. Esfregava as mãos e babava de prazer nos becos escuros ao imaginar os castigos que ele mesmo infringiria aos culpados. Principalmente, aos culpados pelo declínio do patriotismo.
O destino, no entanto, era como o vento que fazia voltas na casa dos sete arcos, farfalhando as folhas, entrando pelas janelas, roçando às paredes e entortando os quadros. O major, sem dar importância ao vento do destino, enchia cadernos anotando segredos e culpas dos moradores.
Esgueirando-se rente às casas - ora volteava sobre si mesmo, ora retomava seus passos, ora seguia em frente - era como um dançarino solitário que ensaiasse os mesmos passos noite após noite. Como ou quando passou a ser seguido por bugios e a ter seus gestos imitados por eles, nunca soube nem viu. Aos bugios que faziam das praças da cidade seu habitat, outros se ajuntaram, vindos das matas próximas. A escuridão da noite escondia essa passeata do absurdo balizada por Badoo.
Badoo só não ignorava uma dor profunda no dedo indicador da mão direita. Ele passou a dormir cada vez menos; durante o dia, retomava seus passos. A partir das anotações feitas, elegeu uma lista de nomes dos moradores, ladeados pelo relato de todos os segredos e culpas. Esta seria entregue no comando geral na cidade vizinha.
Major Badoo sonhava de olhos abertos com as palmas para o discurso que proferiria frente aos comandantes. De seus olhinhos miúdos e estreitos escorria pequenas gotículas de suor ao se imaginar condecorado com medalha de mérito pelos serviços prestados à pátria.
Enfim, pensava ele, teria seu objetivo alcançado, depois de toda a incompreensão, de toda falta de agradecimento pelo trabalho que realizara nos subsolos da pátria: anos passados em câmaras escuras e mal cheirosas a sangue, urina, fezes, maldade e medo, obrigando homens e mulheres a confessarem seus crimes.
Os rostos feitos estampas do terror jamais perturbaram seu sono. Nada sentia. Jamais ofereceu de si a compaixão. Zombava do medo que seus confrades tinham das torturas de uma posteridade infernal.
– As mortes eram somente um mal necessário, os ossos do ofício que me delegaram – balbuciava e concluía cuspindo: – Mortes sem glória!
Enquanto Badoo sucumbia a sua atração patológica pelo mal, os moradores da cidadezinha, alheios à hostilidade da insana criatura, tentavam entender o motivo de serem invadidos por um expressivo número de bugios à noite. A maioria concordava que o fato inusitado estaria anunciando uma seca devastadora; embora, alguns moradores chamassem atenção para o verde viçoso que matizava as matas dos arredores. Seria, disseram então, outro desastre natural anunciado, mas não entendido.
O que não esperaram foi que o desastre tomasse a forma de uma lista de nomes. Oito meses e dezenove dias depois da mudança do dito major para a cidadezinha, os moradores souberam de uma lista onde constavam dois mil quinhentos e cinco nomes, independentemente, de credo, posses, parentesco e importância.
Os cidadãos cujos nomes faziam parte da tal lista, além de serem culpados pelo declínio do patriotismo, eram acusados de roubo, adultério, abortos, incestos e ateísmo. A lista permaneceu em segredo guardada a sete chaves no destacamento. Por isso mesmo uma cópia correu de mão em mão pela cidade. Curiosamente, a ordem dos nomes correspondia à disposição das casas nas ruas.
A seguir, as famílias que não faziam parte da lista passaram a ser alvo de desagravo. Chegaram mesmo a se refugiar por dias em suas casas. Uma nova ordem reinou na cidadezinha. Cada vez que saíam furtivamente às ruas, os bugios não apenas roncavam, mas lhes jogavam fezes. Os moradores reagiram jogando água com creolina nos bugios. Longos conflitos se seguiram até os bugios perderem quase todo pêlo.
Deixando de lado os bugios, moradores listados e não-listados uniram-se para descobrir o infame acusador. Leram e releram a tal lista, uns apressadamente, outros com irritante vagar. Vasculharam ruas claras e iluminadas e becos escuros e limosos. A única casa livre da imundície dos bugios e com moradores isentos de agressão era a do major Badoo.
Concomitante a essa descoberta surpreendente, pois o major nem era da cidade, um estranho fato aconteceu: caturras invadiram a cidade aos bandos, arrasando o pomar da casa dos sete arcos; comendo as frutas, os brotos e as folhas; descascando o tronco e os galhos das árvores; bicando as quinas das janelas e portas.
Na cidadezinha, nem tudo era espanto e vergonha. Os moradores feridos e enxovalhados trataram as feridas pelo corpo e suplicaram pelas suas almas atônitas. Os bugios quase sem pelos sumiram nas matas. A água com sabão lavou as calçadas e as fachadas das casas, escorrendo pelo solo encheu de espumas o rio já combalido, provocando uma mortandade de peixes.
Os moradores se dispuseram a impedir que Badoo viesse a imergir a cidade em trevas novamente, a dar vazão a velhas e novas desavenças por conta de segredos já sepultados no esquecimento. Procuraram então saber as sem-razões do major para se imiscuir em seus segredos.
Aqueles escolhidos para a tarefa encontraram-no em casa, sentado à cabeceira de uma mesa longa coberta com uma toalha alvíssima engomada de tal maneira que era inútil procurar uma mancha ou uma ruga no tecido. Estava só, a família abandonou a cidade com o ataque das caturras. A delegação de moradores também não esquentou a cadeira.
– Não vale à pena, o homem é uma sombra, de perto nem parece humano – disseram à saída.
Nos instantes em que ficaram frente a frente com o major não acreditaram no que seus olhos viram. O dedo indicador da mão direita era enegrecido e seco como um graveto. A negritude alastrava-se em sulcos profundos pela mão e pulso acima, secando o caminho percorrido.
Anos mais tarde, a velha senhora que contou essa história para a neta disse que, naquela mesma noite, sonhara com um barco com velas rotas vagando a deriva no rio. Nele, um bugio negro postava-se a frente de incontáveis portas usando um graveto seco como chave.

Zélia Viana Paim
Imagem Bugios - São Francisco de Assis (RS-Brasil) 

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Flor de Defunto

Jasmim era a sua flor preferida, pelo perfume inebriante, pela alvura e pela textura das pétalas. Tal fascínio não se resumia ao desejo de olhar, de cheirar e de tocar, Maria precisava também satisfazer o desejo de comê-las. Ela não lembrava quando começou a comer as pétalas do pé de jasmim que nasceu e cresceu sem que a mãe e a avó se dessem conta no canto esquerdo da parte de trás da casa.
Certamente, foi muito antes de saber sobre o tio da avó. Antes disso, não entendia o desatino dela, fazendo-a cuspir fora o que restava das pétalas mastigadas gritando:
– Jasmim é flor de defunto, guria – enquanto lavava sua boca com água benta de uma garrafa que mantinha na geladeira para ocasiões que exigiam uma ação divina imediata.
Com o passar do tempo, Maria passou a duvidar que jasmim fosse flor de defunto, embora notasse ao toque certa semelhança da pétala com pele de gente viva - ao arrancar uma pétala da flor, era como se cortasse um pedaço da pele de alguém. Eram pétalas carnudas e sedosas não eram finas como as pétalas de outras flores. E, estranhamente, nunca avistou um jasmim sequer no cemitério.
Quando ia com avó e a mãe lavar o túmulo dos antepassados e trocar as flores secas por outras recém colhidas, rosas, camélias, cravos, palmas ou copos-de-leite, nunca levavam jasmins. A avó e a mãe faziam questão da troca pelas flores frescas de tempos em tempos. As flores eram elementos essenciais, porque testemunhariam o respeito devido à memória dos seus mortos. A deposição das flores era o momento nuclear do rito de recordação e o gesto explícito da visita ao cemitério.
Nessas visitas, as duas recordavam-lhe segredos de vida e de morte que rondavam sua gente. Um deles, em especial, dizia respeito a um tio da avó, morto por causa de um insano amor que lhe despedaçou o coração. Era uma história incansavelmente contada.
Esse tio havia sido um homem de vida conturbada. Na juventude matara dois homens, um em legítima defesa, outro para defender o irmão pai de família. Como os mortos eram forasteiros, ninguém denunciou o acontecido, ninguém reclamou ou velou seus corpos. A autoridade municipal, cada uma ao seu tempo, deixou por isso mesmo, enterrando os corpos na ala dos indigentes sem nome, sem passado, sem história.
O tio da avó casou homem já maduro para aqueles tempos, quando ninguém mais esperava, com uma mulher muito jovem. Arrastou a mulher, franzina e pálida como um lírio, para morar em um fundo de campo, longe de tudo e de todos, onde a retidão da estrada de ferro fazia a curva. Lá, no distante e ermo longe, o ciúme do nada ou de fantasmas tomou conta dos dias e das noites do pobre homem que berrava impropérios às sombras e ameaças aos troncos de árvores.
Santinha, a mulher objeto do insano ciúme, sofreu por sentir que seria impossível viver um amor assim. Aproveitando o sono de quase morte do marido cansado dos dias e noites de vigília, a mulher fugiu, sumindo no mundo seguindo a retidão da estrada. Nunca mais se ouviu falar dela.
Três dias depois o tio chegou à cidade no rastro da mulher. Alucinado vagou pelas ruas sem paradeiro, recusando abrigo e ajuda dos parentes e dos poucos amigos. Num sofrimento sem fim, perseguiu a morte arrumando arruaças nos bares e becos por tudo ou quase nada.
Sete dias contados depois da partida de Santinha, o corpo sem vida com o coração despedaçado por uma bala de arma de caça foi encontrado ao relento, caído num terreno baldio em noite de trovões e tempestade com os bolsos repletos de flores de jasmim e a boca de pétalas mastigadas.
Maria, quando menina, não negava o fascínio pela história daquele parente distante, acentuado pela coincidência das flores de jasmim e, também, pela imagem do homem na lápide que não condizia com a vida alucinada do tio. Era uma fotografia datada do dia do casamento dele e mostrava um belo homem, os cabelos eram loiros e os olhos claros quase transparentes como os dos santos. Adivinhava-se a boca bem feita e carnuda sob um bigode farto de pontas reviradas para cima. O bigode emprestava ao rosto um ar quase jovial e irreverente, mas Maria, desde menina, preferia a beatitude incoerente do olhar.

Zélia Viana Paim

sábado, 29 de outubro de 2011

As Pétalas Rosa Antigo




A manhã estava muito clara, e o céu azul desbotado depois de muita chuva parecia ter sido lavado repetidas vezes. Ela, no entanto, não reparou o dia que parecia convalescente. Não dormira quase nada à noite, uns poucos minutos talvez.
Não havia um fato recente para a inesperada insônia que deixou as olheiras roxas acentuando ainda mais a cor dos olhos. O espelho do banheiro mostrou um rosto sem beleza alguma, a não ser a cor azul violeta dos olhos, quase como os daquela atriz, motivo de orgulho e louvor. Enquanto olhava nos olhos e escovava os dentes, ela pensou que não importava o motivo da insônia, porque teria o dia para se recuperar da noite indormida. A primeira providência seria fazer um café bem reforçado.
Ao se dirigir à cozinha, contando mentalmente os passos que a separavam do quarto, uma cena brincou com suas lembranças. As rosas colhidas antes da chuva e cuidadosamente colocadas no vaso ao centro da mesa da sala estavam todas despetaladas. As hastes exibiam o receptáculo e as sépalas, as pétalas rosa antigo rodeavam o pé do vaso verde-água. Uma desolada e definitiva beleza já apreciada antes.
Sem pensar, imediatamente, ela vasculhou a gaveta da cômoda encostada à parede até encontrar o macio objeto de sua busca. De posse do lenço branco de seda desdobrou-o e tentou desfazer delicadamente as marcas das dobras com a ponta dos dedos estendendo-o na mesa. Começou então a separar e contar as pétalas, como havia feito tantas vezes quando era ainda uma adolescente e depois uma mulher casada e que quase nunca mais fizera desde então.
Ela pensou que tivesse esquecido, mas logo os dedos e os lábios refizeram os detalhes do ritual que inventara na solidão há anos. A seleção das pétalas perfeitas seguia critérios que não poderiam ser descritos em palavras. O contato ínfimo dos dedos com a maciez da pétala, como se os sulcos que constituíam a digital fossem delicada ventosa que a sustentassem sem deixar mácula, obedeciam a um ritmo lento e hipnótico. O movimento lhe trouxe à memória fatos, como partes de um rosário de lembranças.
Sobreveio a sensação de calma e de atenção concentrada que desempenhava um papel importante para falar com as sombras do passado. Ah! as sombras... Só as sombras sabiam que quase tudo nela era falso. Ninguém poderia imaginar, ela pareceria tão gentil ostentando uma sabedoria tão triste em seus olhos. Mas as sombras sabiam. Todas as suas ações escondiam uma ameaça e cada sorriso era uma máscara de fingimento. Todos, durante toda a sua vida, acreditaram que ela era inofensiva.
Ela havia enganado muito bem todos os professores, os pais, os irmãos, os colegas, os amigos, os vizinhos, ele e outros que algum dia demonstraram algum interesse por ela. Ela havia se preparado para ser assim. Seu pensamento mais frequente era “posso cuidar muito bem de você”. Não havia para ela nenhum perigo em ser enganadora. Ou remorso.
Àquela altura, em meio ao ritual, lembrou o momento exato em que se viu cansada de enganar. Tornara-se uma fugitiva e se escondera neste lugar remoto longe dele e de todos que pertenceram ao passado. Sabia que ele e os outros a odiariam e não teriam misericórdia se por acaso tivessem que lhe julgar culpada de falsidade. Então, ela se inclinou para frente, falando em tom baixo e cauteloso.
— Por que estou lembrando esse momento? — e continuou,... dirigindo-se às sombras no singular — Posso confiar em ti? Como se já não soubesses? Por que explicar a ti me dá uma escolha? Tu deves saber tudo. Ele me despreza, e eu... me arrependo.
Ela estava jogando. Enganando. Mentindo às sombras. Ela enganaria mesmo se isso tornasse as coisas piores para si mesma. Simplesmente gostava demais de enganar para parar. A verdade era uma. Fugiu porque cansou dele. Cansou que acreditasse nela, mesmo quase oferecendo-lhe de bandeja às provas de que era enganadora. Cansou de alimentá-lo com esperança e desespero. Cansou de dividir a amargura dos dias partidos um a um.
Qualquer coisa que dissesse seria mentira. Jurava amá-lo. Jurava odiá-lo. Pedia que a perdoasse pelo desamor enquanto pensava “que essa mentira pelo menos o console um pouco antes de se tornar fonte de novos sofrimentos”. Sabia, no entanto, que estava mentindo para si mesma. Nesses momentos, o que ela queria mesmo era um minuto livre dele. Ele era um egoísta no seu amor por ela. Enganava-se pensando que bastava desejar o amor dela, para que ela o desse. Ela desejava um nada para ele. Voltando a falar às sombras sussurrou:
– Tu me decifras qual esfinge! Mas te enganas se pensas que eu quero esquecer. Quero levar comigo o minuto de abismo do primeiro passo para o longe. O momento de recusar a força de uma vida moldada. Recusar a predestinação de ser igual a elas. Recusar tudo, tanto a inocência quanto o pecado. Portanto, não me julgues apenas por recusar trazer nos olhos, além da minhas, as lágrimas de outro.
Então com um sorriso que parecia triste, um dar de ombros e um meneio de cabeça que desmentiam a tristeza, como se cumprimentasse um adversário inteligente que tivesse feito um bom movimento no tabuleiro de xadrez, ela recolheu as pétalas juntando as pontas do lenço. Abriu a janela e soltou as pétalas ao vento e as sombras... ao tempo.

Zélia Viana Paim
Imagem/Foto de Zélia Viana Paim

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Enquanto a Terra gira


As nuvens pinceladas no horizonte pareciam brasas incandescentes, e o sol, um ponto vermelho como sangue. A luz do entardecer acentuava o brilho dos olhos escuros e mansos de Lúcia. Por trás da mansidão do olhar, perpassava um sorriso irônico, mas essa face velada era um vislumbre apenas para ela na sua imagem refletida no espelho. Lúcia morava com Pedro na mesma casa, que fora de sua bisavó, erguida no meio do pampa.
Era uma casa de dois andares, com duas torres separadas por uma saleta forrada de prateleiras repletas de livros antigos e raros. O quarto dela ficava na torre norte, o lado iluminado, o dele ficava na torre sul, o lado sombrio. Lúcia quase não saía de casa, e Pedro vivia a vagar pelos campos de revolução, degola e morte.
Lúcia procurava não pensar no perigo dessas andanças. Aprendera que se rebelar contra a hora da morte era tarefa vã. Lera nos livros que as servas do Destino são incansáveis em fiar o fluxo da existência humana, em tecer o ritmo da criatura e marcar a hora da morte. O corte do fio da vida é parte do trabalho da serva, obedecendo a um capricho do seu senhor: o momento definitivo de se abandonar o corpo.
Agora a luminosidade alongava a sombra de tudo sobre terra, os caules e troncos das árvores mais próximas tinham um tom rosado. A noite logo cairia com um manto negro ao redor. O tempo fluía devagar como uma reza de beatas na saleta, onde Lúcia lia. Os olhos arderam, ela levantou-se e acendeu o lampião, procurando não pensar em Pedro andando sabe-se lá onde, à mercê de maragatos e ximangos.
Pedro e Lúcia eram os últimos que restavam da família. Eram da mesma idade, haviam sido criados juntos e, assim, viviam há mais de um par de décadas. Agora, as volúveis opiniões dos homens não os impressionavam mais. Concordavam que eram as forças impalpáveis do universo que os amedrontavam, moviam-nos como marionetes e se dedicavam a fazer deles os seres que eram.
Foi assim que, no tempo próprio em que cada espécie encontra um par, não encontraram ninguém, a não ser um ao outro. Sabiam também ter direito ao amor, à força universal da atração que justifica a união dos seres, engendrando as linhas de descendência que acabam por ligar a todos: os deuses, os homens e mesmo os deuses e homens. Eles seriam sempre únicos; pois, com os dois, toda a história dos seus encontrara o fim.
Sem pensar em Lúcia, Pedro chegou ao alto do cerro do qual se avistava o horizonte ao longe. Era um cerro de pedra de cume achatado no qual dormitavam lagoas eternas e cristalinas. A chegada foi um instante antes da hora em que o dia se transforma em noite, e todos os seres e as pedras perderam seus contornos próprios. Então, tudo se tornou uno.
Pedro era um duplo: carente e andarilho, herança da mãe; corajoso e esperto caçador, herança do pai, irmão de Lúcia. Há anos, desde o começo da revolução, passava os dias e parte da noite campeando, olhando aqui e ali, desconfiando de seus passos, vigiando seus flancos, esperando ser atacado a qualquer momento por homem ou sombra.
Ele desertara, por causa de Lúcia. Mas mesmo sem tomar parte nas batalhas, estava na guerra como todos. A morte rondava a pé e a cavalo pelos pagos. Lembrava a si mesmo disso, como se estivesse se desculpando pelo cheiro de sangue e de morte entranhado nas ventas. Vivia apartado dos homens, não tinha amigos nem inimigos. Não sabia o que procurava, não defendia um ideal, apenas desferia golpes ao acaso, ao léu, ao vento.
A revolução havia passado perto dali, onde ele vivia com Lúcia. Tudo que havia sido destruído seria, novamente, construído. Os bichos e os homens que sobreviveram voltariam a morar na antiga morada. Assim era a guerra, assim seria a paz, enquanto algures o mal não revivesse. O terror e a discórdia, o amor e a paz se alternavam sempre, às vezes, na mesma geração de homens.
No alto do cerro, Pedro sentia um torpor penetrar por seus poros e paralisar todos os seus músculos e nervos. Não se sentia mais vigiado, todas as preocupações abandonaram seu coração, a mente desanuviara-se, a vida ganhara esplendor. Pedro desejou ter, por um momento, o poder dos homens sábios ou santos para intervir de maneira decisiva nos acontecimentos do mundo. Mudar o seu destino ligado ao de Lúcia desde sempre, mudar a condição imposta para viver esse amor insano.
O latido de cães, ao longe, resgatou Pedro do torpor e do quase arrependimento. Abriu os olhos para a noite soturna. Toda terra ao redor, até onde seus olhos podiam ver ali do alto, estava tomada pela noite mais escura de sua existência. Somente nas partes baixas que formavam os pequenos vales onde corriam arroios e sangas pairava uma névoa esbranquiçada, cujos fios no topo das árvores se enrascavam como inimigos ou como amantes.
Pedro retomou seus passos por caminhos de breu. Os cães, que ouvira antes, anunciaram a sua chegada em casa. Ao aproximar-se de Lúcia, um novo estado de espírito se apoderou dele, sentia-se decidido e sereno. Sabia que Lúcia estava sentindo exatamente o mesmo.
Sabiam que nenhum dos dois mudaria depois de ter sentido na pele a carícia das mãos do outro. Aqueles seriam eles para o resto da vida. E assim, sem se perguntarem se outros amantes apaixonados antes deles teriam sentido um amor capaz de proporcionar tamanha infelicidade e prazer, ficaram deitados juntos. Enquanto a Terra gira.

Zélia Viana Paim
Imagem Terra_Gaia

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O Ensaio


Petrus encostou-se à parede de cristal no centésimo andar do prédio onde estavam instalados os laboratórios e alojamentos destinados aos cientistas da computação holográfica naquela região do país. Olhou ao longe, muito além dos limites murados da cidadela. Os campos em primeiro plano estavam cobertos de miúdas flores amarelas nascidas muito depois da grande seca. Depois dos campos, onde a vista quase não alcançava, nas fazendas comunitárias de criação de búfalos, os campos de pastagem irrigada eram muito verdes.
Ele era um belo homem, tinha cabelos e olhos negros e a pele muito branca. Vestia-se, invariavelmente, de preto, como a maioria dos homens de sua idade. Diferenciava-se deles pelos acessórios: usava uma fina corrente de prata, um fio quase imperceptível, da qual pendia um minúsculo medalhão esculpido caprichosamente com a figura de um dragão. No dedo médio da mão direita usava um anel também de prata com uma pedra de cor azul marinho encravada, cuja laboriosa lapidação oval atraía o olhar apesar de minúscula. As duas jóias eram símbolos da irmandade a qual pertencia.
Petrus pensou em Sophia, sua amada. Viveu com ela desde a adolescência até aqueles anos de incoerência e medo nas três últimas décadas. Um tempo que nomearam como ensaio do fim do mundo.
Primeiro veio a “era do transgênico”. Tempos difíceis, durante os quais, sementes transgênicas substituíram as orgânicas por toda a terra cultivável até se tornarem proibidas. Isso só aconteceu porque os mesmos laboratórios que as disseminaram extraíram e salvaguardaram a célula germinal dos alimentos orgânicos cultiváveis. Então, aos poucos, os transgênicos foram sendo consumidos por pragas ecológicas criadas por filiais clandestinas dos mesmos laboratórios. Os órgãos de Estado responsáveis pela transição não divulgaram que a mudança no consumo de alimentos transgênicos para alimentos orgânicos ocasionaria crises de abstinência nos mais jovens.
Sobreveio, então, a “era das nascentes” quando a água passou a ser considerada riqueza. Os aquíferos, reservatórios intocados no subsolo dos continentes, definiram um novo poder mundial. O país atingiu um novo patamar no ranking dos países ricos e pôde mapear seu território em busca de mais água potável. Assim, o governo marcou, cercou e guardou cada vertente ou nascente perene, para que o entorno delas permanecesse intocado em raio de quilômetros considerado seguro, apropriando-se de hectares de terra em benefício do Estado.
A última foi a década do “paraíso induzido”. Uma catástrofe planetária em ondas climáticas vindas do sul: primeiro foram chuvas torrenciais e granizos que inundaram e gelaram a terra; depois, secas intermináveis que desertificaram extensas áreas. Essa catástrofe climática foi desencadeada por uma sociedade internacional de cientistas do tempo que, num delírio de perfeição, tentou induzir um clima perfeito a partir de experiências realizadas em laboratórios sediados no pólo sul.
Foi no início dessa última década que uma lenda veio a público na rede mundial de computadores. A existência de uma chave de portal que daria acesso a um novo Éden. Sophia era um dos sujeitos empenhados nessa busca. Ela passou anos tentando decifrar a linguagem que a levaria às figuras, cuja disposição engendraria um signo que servia como chave do portal. Então, desapareceu numa madruga ainda escura e fria.
Petrus afastou-se da parede, estava exausto, os olhos ardiam, as mãos tremiam, era um misto de esperança e desespero. Há três meses, havia encontrado pistas na linguagem que Sophia usava no seu trabalho como designer de interface gráfica. Descobriu a linguagem cifrada, criada a partir da antiga linguagem fonética usada pelos internautas do início do século e figuras de cartas de um game dessa mesma época. Essa era uma linguagem cibernética criada pela irmandade, a qual agora Petrus pertencia. Nessa linguagem segredos eram revelados; preconizavam caminhos incomuns, embora, não afirmassem como já trilhados.
Petrus movimentou-se pela sala, parou no centro abrindo no espaço uma janela holográfica. Com gestos rápidos, nela abriu vários ambientes até chegar ao seu objetivo final. Um espaço dividido para inserir as doze partes do signo que servia de chave. Ao inserir a última, um êxtase tomou conta do corpo de Petrus.
Corpo e mente vaguearam pelo espaço onde nada existia; nem o ardor do sol, nem o desejo dos amantes, apenas uma pálida luz azulada. Uma nostalgia infinda apoderou-se de Petrus ao ver-se só, caminhando numa trilha sem sombras à margem do leito de um rio, onde corria um espesso líquido de brilho prateado. Na superfície lisa, uma ondulação ocasional quebrava languidamente na margem escura com brilhos ocasionais.
O caminho parecia se desfazer numa reta e, um pouco mais adiante, num objeto sólido como um molhe a se projetar sobre o rio. Não havia mais nada visível além do fim do molhe. Mas havia um som lento, suave e regular lá fora, no invisível. Petrus sentou-se e esperou. Então, o barco apareceu.
O velho barqueiro aproximou-se do molhe e se comoveu com a esperança nos olhos de Petrus. Não houve necessidade de falar. Estendeu a mão e recebeu, no bojo de seu barco de titânio, o homem em busca da mulher amada. Assim, navegando juntos, o barqueiro de olhos claros e úmidos e o viajante com olhos de esperança chegam à margem visível, às portas de uma cúpula translúcida. Petrus despede-se do barqueiro e desce para a praia de areias brancas, sem que o barco balance no espesso líquido.
Antes do barqueiro desaparecer no invisível, a porta abre-se ao toque suave da ponta de seus dedos. Dentro da cúpula, estava amanhecendo. Uma ampla luz doura a planície sem fim que se estende ondulando suavemente. Embora houvesse grandes árvores, a maior parte era coberta por relva baixa numa variedade infinita de tons de verde e matizes dourados. Era primavera e das minúsculas flores emanam delicados perfumes, das grandes árvores que dobram seus galhos ao alcance da mão pendem frutos maduros.
Ele despe-se e caminha sob a cúpula sem olhar para trás. O homem descoberto não sente frio, sede, fome ou cansaço, apenas uma morna embriaguez. Seus passos trilham um caminho sem marcas humanas. Após uma jornada, cuja duração não pensou em determinar, ouve o barulho de um mar batendo nas rochas de um penhasco.
O homem permanece parado por alguns instantes, cheira o ar, ergue a cabeça com o lábio superior voltado para dentro, e depois, como se cerrasse as narinas, respira fundo pela boca. Ele intercepta o cheiro da mulher amada. Orientando-se pela trilha deixada pelo seu cheiro, encontra-a na margem daquele mar, na união dos dois elementos...
Zélia Viana Paim
Imagem/Foto de Zélia Viana Paim

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

No Terraço Circular

Carma vivia há mais de cento e cinquenta anos, não sabia mais ao certo quantos porque já havia perdido a conta de seus dias. Ela esperava ver o final dos tempos; no entanto, secretamente, desejava sobreviver a ele e viver eras sobre eras.
Muitos eram os seus anseios relacionados ao devir, um deles era que a sucessão de dias, horas, minutos e segundos que encerram o homem no seu exíguo viver não existisse. Outro, que a inveja associada ao ódio, ao prazer na adversidade do próximo, a aflição em relação à felicidade alheia fosse erradicada. Quase desejava prever um mundo ideal, onde não haveria causa para fome ou pranto.
A face de Carma era cortada por mil rugas finas que lhe estreitavam os olhos claros. No entanto, ainda tinha as mãos e as pernas fortes, e a pele cor de cuia possuía um brilho natural como o das indígenas. Seus dias preferidos eram os dias claros, quando a aurora levantava-se no mar oriental, oferecendo generosamente sua luz ao mundo. Suas roupas eram da cor das pedras, das folhas, dos troncos e dos musgos, mimetizando com o ambiente ao redor.
Ela vivia no alto de uma montanha, numa espécie de terraço circular, de onde avistava todo o horizonte. Era um lugar inacessível por vários motivos, não apenas para aquele que não soubesse andar sobre rochas imensas, saltando sobre os espaços entre uma e outra. Em todos aqueles incontáveis anos, poucos se atreveram a passar além da primeira pedra que fechava o imperceptível caminho que serpentava a montanha.
Ao pé da escada de pedras, o simples curioso sentia sua alma devassada, obrigando-o a recuar em seus passos. Só o crente na existência de seres tão antigos como o princípio dos tempos ultrapassava essa espécie de portal. Esses poucos que chegavam até o topo juraram ter visto um ser fugidio e resplandecente seguir seus passos por todo caminho de pedras.
Lá, longe da morte e da guerra, vivia Carma com o filho Jonas. Ele tinha a face indecifrável, do mesmo modo o número de anos que já tinha vivido. Sua aparência era a de um ser mitológico. Um centauro, no dizer de sua mãe. Se ela não soubesse que era nascido de suas entranhas diria: uma cria de homem e bicho de cascos.
Os cabelos de Jonas eram de um crespo graúdo, o bigode fino contornava os cantos da boca e o cavanhaque terminava em uma fina trança abaixo do queixo. Sua face era quase negra e tinha as mãos e os pés encardidos da terra e do verde das plantas. Seus dias preferidos eram os de chuva, quando, então, andava pela montanha assobiando uma música que só ele ouvia.
Carma ensinou Jonas a não matar ou fazer matar, roubar ou fazer roubar, falsear a medidas das coisas concretas ou abstratas, apartar os pássaros de seus ninhos ou as crias de suas mães. Ensinou-o a ouvir o rumor de armas e a não ultrapassar a linha tênue e de cor igual a nenhuma outra que separava um mundo de outro mundo.
Jonas lembrava Jacinto, o único homem que Carma muito amou. Ele havia morrido em uma das primeiras guerras de todo o seu tempo vivido até então. Sua morte não foi por ter sido soldado ou por tomar parte em algum exército, mas por estar cansado de fugir das forças que queriam a arraia miúda para servir como ponta de lança em batalhas perdidas. Jacinto morreu porque não teve forças para escapar de mãos jovens e trêmulas que seguravam baionetas sedentas de sangue num descampado em uma noite sem lua.
No amanhecer do dia seguinte à morte de Jacinto, Carma preparou-se para abandonar o convívio dos humanos, grávida de poucas semanas. Caminhou por toda a primeira noite e muitas outras mais, querendo chegar ao tempo mais distante. Ela deu-se conta desse singular caminhar quando viu tudo passar por ela, a paz e a guerra e, novamente, a paz e a guerra. Assim foi até o amanhecer de um dia como hoje, uma manhã como esta quando se encontrou ao pé da escada de pedra que dava acesso a esse seu lugar sem tempo.
Em seu agora, via Jonas aproximar-se, balançando a cabeça, lembrando certa vez em que estava com Jacinto. Ele, em sua posição preferida, sentado sobre seus calcanhares, muito sério, macerando na palma de uma das mãos o fumo recém cortado, matutava. Este era um ato muito mais profundo do que o pensar, era como se outro ser, mais sutil, pensasse por Jacinto. Ao cabo de algum tempo, lhe dissera baixinho, como se contasse o último segredo da vida:
- Tenho matutado... Deus está nos joelhos e no alto da cabeça, bem na moleira. Por isso, pra fazer uma prece é preciso ajoelhar na terra e manter a cabeça como um prumo... Decerto, assim, fez Cristo.
Carma pensou em como alguns acontecimentos como este ficaram gravados tão nitidamente na retina. Levantou-se do lugar onde estava sentada, colheu um ramo de funcho que colocou atrás da orelha e uma folha de melissa que colocou entre os dentes, mascando suavemente até sentir a seiva doce na língua. Pensou na mãe, na avó e na mãe desta. Seus homens, também, haviam morrido de morte violenta.
Por muito tempo, não pensara nestes acontecimentos, esquecera que a história de sua gente era a sua história. Lembrava agora o mistério insolúvel envolvendo a morte de seu bisavô; a morte explícita de seu avô degolado em praça pública; a morte de seu pai numa briga de bêbados que não era a dele. Essas eram mortes consideradas pouco dignas naqueles tempos bárbaros. Ao contar a Jonas, ele respondeu:
- Assim é a vida e suas criaturas - sentando sobre seus calcanhares, enrolando entre os dedos a trança que pendia de seu queixo.

Zélia Viana Paim
Imagem  Peabiru_Garuva (PR)