sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Passo em falso



Era o início da estação...
O tempo corria veloz e faminto. Os moradores na cidade ainda adormecida não assistiram a madrugada soturna que estendia seu manto pelo mundo. O dia quase não amanheceu. As cores da manhã estenderam-se e não deixaram lugar para o dia que pareceu emendar com a noite. Finas colunas de um nevoeiro cinza subiam das poças nos caminhos e se enrascavam feito amantes.
Pedro com os olhos nos sapatos úmidos e estropiados pouco se importava com o dia. Caminhava, deixando-se levar pelo sentimento miserável nascido da paixão proibida. A noite ao léu durou uma eternidade. Desejou sinceramente, depois com remorso, que uma emergência o chamasse de volta aos seus pacientes no hospital, arrancando-o daquele pesadelo insuportável povoado de imagens que procurava não ver.
Muitas vezes antes espreitara a mulher pela qual estava louco de paixão sentindo-se culpado de um sério delito, um réu prestes a ser julgado pelo pecado da carne. Mas... suportando o gume de uma lâmina encostar sua garganta, cravava os olhos em nesgas da pele branca e nua da mulher que desejava. Com a respiração suspensa aproximava-se reprimindo um gesto de afeto; ao menor movimento dela, fugia sob seus próprios passos.
No transcorrer daquela noite, depois da festa de casamento dela, caminhou solitário pelo mundo afora, arrastando o corpo massacrado pelo infame desejo. Havia decidido evitar aquela que agora era a mulher de seu irmão e guardar seu amor, como uma fera enjaulada no fundo de si mesmo. Sabia, no entanto, que havia sido um esforço inútil. Sofria encarcerado na mesma jaula, dilacerado pela fera que não ousara domar.
Mal sabem ou querem esquecer que o destino tece com um fio falso a felicidade de uns e a infelicidade de outros. Nesse enredar de vidas, tudo é passível de mutação. E, no enredo dessa ordem cósmica, eterna é a impotência dos homens frente aos (des)mandos do destino.
[...]
As horas dos dias arrastavam-se, como se os ponteiros do relógio carregassem o peso de todos os segundos marcados por eras sobre eras. Quando não estava no hospital, Pedro fugia a passos largos por caminhos inventados pelo desespero que o levava cada vez mais longe de casa, das ruas, dos últimos casebres da cidade, rumo à escuridão das noites que se sucediam iguais a si mesmas.
Então, um vento morno principiou a soprar devagar na hora mais escura de uma daquelas noites iguais. Na manhã, o vento insistia, levantando a terra em seu caminho, arrancando as folhas dos galhos das árvores, varrendo-as para os cantos dos muros, os fundos dos becos e os vãos dos portões. As portas batiam, como se fossem obrigadas a encerrar segredos para sempre.
Há meses ela disfarçava o sentimento que pouco a pouco se apoderou de todo seu ser. No início estava segura de que jamais trairia o marido. Depois percebeu que em sua alma já o traíra. O corpo era apenas instrumento do desejo que crescia nela ora como um martírio ora como um bem supremo.
Há meses o céu amanhecia encoberto como se fosse parte do cenário preparando o dilema dos dois. Durante o dia, um tom cinza uniformizava o aspecto de tudo que havia. No interminável cinza, ela não cuidou mais de esconder de si o desejo implacável que sentia.
A mata, na qual se embrenhou no encalço de Pedro, encobria desejos secretos. Encontraram-se. Sem dizer palavra, despiram-se, estenderam suas roupas no chão de folhas caídas e sobre elas se amaram. Risos, sussurros de amor, gemidos de prazer e cânticos anônimos ressoaram no espaço afora.
[...]
Era o fim da estação...
Trovões feriram o espaço aparentemente calmo. Grossos pingos de chuva molharam a terra, como se o céu quisesse chorar por toda a mágoa dos traídos. A chuva, no entanto, não preocupou ninguém. Os moradores da cidade chegaram mesmo a agradecer por aquela água generosa e abundante que, pensaram eles, haveria de fortalecer as plantações e resultaria em abundante safra.
Mas os dias e noites passaram, e a chuva aumentou até os campos ficarem alagados e as águas se avolumarem. O rio transbordou de seu leito com a violência contida durante meses. Colheitas, árvores, animais, cercas, muros, casas, estradas, pontes, tudo aquilo que restava vizinho às margens transbordadas do rio foi sendo tragado pelas águas.
Benzedeiras tentavam acalmar a tempestade nas janelas dos quatro cantos da cidade, fazendo o sinal da cruz com as palmas bentas no Domingo de Ramos. De nada adiantou, as nuvens formavam uma camada tão densa e baixa que pareciam anunciar o próprio derramamento do céu. Era novamente o dilúvio sobre a Terra. A chuva caía com furor e se tornava violentas enxurradas.
Na cidade mal dormiam nos dias e noites em que as águas tomavam conta do mundo. Os trovões ribombavam. O ar era um odor de tronco úmido apodrecido e deitado ao solo das matas. A noite era um breu. As janelas e o telhado das casas estremeciam como se um ente sem corpo se jogasse sem piedade sobre elas, querendo esmagar a todos.
Pedro mudou-se para o hospital, no socorro às vítimas nunca mais pregou os olhos; ela, se dormia, acordava com o coração aflito, cansada de sentir a presença da desgraça. Rezava terços pedindo perdão, fazia promessas de sufocar o desejo arrebatado pelo irmão do marido. O céu pareceu responder e pouco a pouco se fez o que parecia ser a paz na natureza. A chuva estancou. Mas o coração dela estava certo, o destino é voraz na satisfação de sua vontade desatinada.
À luz de lanternas e de lampiões, o irmão de Pedro comandava as frentes de trabalho na ponte que atravessava o rio que banhava a cidade. Um passo em falso... e o destino selou a sorte dele. No leito cheio do rio, ele lutou contra a violenta correnteza, mas sua coragem foi vã. A fúria das águas acabou por tragá-lo, sufocando seu último sopro de vida.
Um conhecido trouxe a notícia do seu desaparecimento. Ela não quis acreditar. A ausência da materialidade do corpo não atestava a imaterialidade da morte. Com olhos secos, ela se pôs a rondar por dias seguidos as águas barrentas do rio, procurando ouvir em seu murmúrio notícias do paradeiro dele. Mas do murmúrio das águas ouvia histórias outras que não queria escutar. Aquele era um rio traiçoeiro carregado de lamentações profundas e memórias perdidas.

Zélia Viana Paim
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2 comentários:

  1. Zélia Maria, um conto melhor que o outro. É incrível como a tua escrita transita entre o estilo clássico de um conto, o estilo de Clarice Lispector. Arrisco-me a dizer que existem algumas nuances de L. A. Fischer. Quero ler esse conto completo... aliás, todos, pois encontrei reticências em vários. Por fim, repito: publique um livro, Zélia!

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