terça-feira, 17 de maio de 2011

Tempo de Contrários

La Gallega, a pequena caravela, singrava o mar profundo há mais de dois meses em direção ao pôr-do-sol na busca de terras novas. Era um barco de casco em “v”, seguro, veloz e de grande mobilidade, característica que lhe permitia navegar ventos contrários. O capitão era homem de poucas palavras e produzia, nos companheiros de viagem, sentimentos alternados de admiração e pavor. Era considerado um louco pela tripulação que temia tanto olhar em seus olhos quanto desobedecer a suas ordens. Os dois jovens, Inês e Miguel, veneravam-no mais que a qualquer outro mortal. O que irmanava os viajantes era àquela altura da viagem estarem todos esgotados; situação agravada pelo racionamento de comida e água.

Inês navegava com o capitão pela primeira vez e àquela manhã, quando acordou, temeu mais uma vez pelas suas vidas.
– Poderosa deusa! Que tempo é este que nunca vi? – Resmungou para si mesma.
O dia amanhecera com uma cor quase impossível de descrever. Nuvens indomáveis corriam de um extermo a outro no céu acima de sua cabeça. O nascente azulado sem um fiapo branco sequer e o poente encoberto de nuvens roxas que se enrolavam uma sobre as outras como se fossem meadas de linha. Aos olhos de Inês, parecia o caos do início ou do fim dos tempos.
– Não desabeis vossa fúria sobre nós. Recuai! Não jogueis sem piedade esse barco no profundo mar. Livrai-nos dos monstros que habitam o insondável abismo! – Pedia a jovem Inês, erguendo as mãos para as nuvens e as baixando para o mar repetidamente numa dança singular.
Inês confiava no capitão, conhecia-o desde menina, do tempo em que sua mãe ainda era viva. Acreditava nele. Admirava-o. Era um homem muito sábio. Sempre foi navegador, conhecedor dos caminhos do mar e das estrelas do céu. Mas agora navegavam um mar desconhecido e as estrelas ainda não tinha função nem nome.
– Os elementos, nestes confins, talvez desconheçam o homem e suas minúsculas naus. Por que fui tirar meus pés da terra firme? Ah! Sábia criatura, para não seres queimada numa fogueira como tua pobre mãe. Lembra-te! Esses ainda são tempos governados pela santa Igreja – respondeu para si mesma, abraçando o corpo estremecido por um calafrio.
A fixação de Inês pelo poente, a paixão pelo desconhecido fora a única coisa que herdara da mãe. Ela fora uma mulher bela e sábia, conhecedora do poder das fases da lua sobre as marés e das estrelas sobre o destino dos humanos. O saber de Inês era outro: o poder oculto das plantas.
Sabia de plantas com folhas e galhos escuros, sem flores, com frutos negros, de forma rara e estranha, com crescimento tão lento quanto a eternidade, que tinham o poder de entorpecer os sentidos. Sabia de plantas que existiam somente perto da água doce, com folhas frias e enormes, cujo leite sem sabor excitava mil vezes o apetite sexual. Sabia o poder de muitas mais. Esse seu saber, como o de sua mãe, também era perigoso aos olhos dos que tinham poder.
Isso tudo pensava Inês, em sua limitada cabine, enquanto macerava folhas secas de mirra com seus dedos delicados de unhas curtas e rosadas em um pote de porcelana. Quando se tornaram pó, arrumou um montículo numa pequena concha de madrepérola e, virando-se para o poente, ateou fogo e invocou quando um fio de fumaça subiu serpenteando em espiral:
– Poderoso e imortal Zéfiro! Bondosa força do vento Oeste! Socorrei estes míseros mortais que ousaram ter poder para navegar sob as estrelas no desconhecido mar. Conduzi essa nau pelos caminhos do mar ao encontro da terra firme. Deusa poderosa! Agradeço a vós, sapientíssima e amorosa, pelas palavras que saíram da minha boca.

Alheio a reza e ao ritual de Inês, Miguel, o cristão novo, amigo e ajudante do capitão, também estava incomodado com a cor do céu naquela manhã.
– Eu acredito no capitão, ele é o mais sábio dos homens. É um homem poderoso. Os caminhos do mar desconhecido se abrem generosamente para ele. Logo, ele é capaz de navegar o mar sem fim. Tenho fé! Nosso Senhor, Deus-Todo-Poderoso! Ele chegará aonde deseja ir; – afirmava para si mesmo, completando – embora, o tempo não esteja do seu lado.
As palavras escapavam de sua boca como se fosse uma prece. Miguel era alto, com a pele clara, os cabelos e os olhos negros. Sob o lábio leporino quase imperceptível, usava um bigode. Vivia para perscrutar o horizonte infinito durante o dia, e as estrelas durante a noite. Era minucioso nos seus cálculos e de total confiança do capitão.
– Meu Deus! Pelos meus cálculos, já navegamos toda a água estimada pelos estudiosos, já ultrapassamos inúmeras vezes a linha do horizonte. E até agora nada, nenhum sinal de terra. Meus olhos cansados avistam caudas de dragão seguindo a nau. Poderiam avistar, ao menos, uma ave qualquer no céu. Essas sim seriam um bom presságio, mas nada, nada, a não ser o desconhecido insondável, a sombra dos mitos e este tempo que não é nosso. Tempo de outros tempos, outras eras, outros mundos – falava gesticulando em volta da mesa com mapas abertos sobre ela e, sobre os mapas, bússolas, astrolábios e quadrantes.
Desde menino, Miguel acompanhava o capitão em suas viagens, navegara com ele pelos mares quentes da África e pelos mares gelados do Norte. A sua educação na arte da navegação fora destinada ao capitão pelo próprio pai. Ele era um mercantilista judeu que acumulara grande fortuna, em pouco tempo, graças a seus empreendimentos na navegação. O pai de Miguel pretendia fazer dele capitão de sua própria nau e, talvez, de sua própria frota. Miguel considerava o pai um homem de visão aguçada para a época.
– Meu Deus, Pai Todo Poderoso, Senhor do Universo, céus e terras estão sob vosso domínio, ajudai-nos, tende piedade de nós – pedia enquanto escrevia em seu diário:
"Estamos a sessenta o oito dias no mar. A última vez que vimos terra foram as ilhas onde abastecemos de frutas, água e caça há quarenta e oito dias. Depois não encontramos mais terra. Enfrentamos todo tipo de tempo nesses meses de viagem: tempestade, bonança, calmaria, mas nunca um tempo assim. O céu está em revolta e as nuvens estão bem próximas, creio que, em breve, desabarão sobre nós. O mar está calmo e liso como um rio. Isso não o impedirá de nos esmagar como seres ínfimos que somos à mercê de seus humores. O capitão não dá mostras de preocupação, mandou baixar as velas, deixando somente a da popa e deu ordens para contemporizar e esperar a tempestade."

Miguel fechou o diário e saiu ao encontro de Inês, alcançando-a no instante em que soprava cinzas para o vento. Na proa, os dois jovens miraram o poente esperando algum sinal. À frente deles, as nuvens eram como um paredão roxo quase negro. Então, suas narinas dilataram, e ambos sentiram uma leve mudança no cheiro salgado de mar. O vento mudara trazendo um perfume dulcíssimo, tão agradável que deu aos dois um prazer imenso em senti-lo.
– Estarei tendo novas alucinações? – Perguntou-se Miguel, mal mexendo os lábios, tentando menosprezar a secreta alegria que tantas vezes antes provara ao sentir o cheiro de terra a léguas de distância.

Um troar de trovões anunciou a chuva que desabou copiosa sobre o mar, os pingos eram grossos, pesados e quentes. Miguel e Inês voltaram aos seus lugares. O mar liso encrespou levantando vagas imensas que batiam no lenho com estrondo de mil tambores. A tripulação lutou para proteger o barco e a vela da reviravolta inesperada do vento. Choveu durante horas ininterruptas. Parou no fim da tarde, quando o sol ainda estava a um palmo do horizonte. Um bando de aves brancas, nunca vistas, retornando para terra, veio dar à nau. Era o segundo sinal de terra, em quarenta e oito dias, navegando sempre em direção ao poente. Na proa, Inês e Miguel sorriram igualmente agradecidos e crédulos.

Zélia Viana Paim
Reescrito, publicado, em 2004, no Jornal Letras Santiaguenses.

Um comentário:

  1. Oi professora Zelia! Que saudades de você! Leio o seu blog diariamente ,admiro demais seus escritos.Parabens! Bjão

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