domingo, 3 de abril de 2011

Incorpóreo


À noite, alguma coisa assustadora, um perseguidor incorpóreo seguia seus passos. A cada esquina que dobrava, a cada rua que atravessava olhava para trás tentando surpreender o perseguidor.
Inútil!
O incorpóreo era companhia constante.
Para não ficar sozinho à mercê de seus desmandos potenciais, atirava-se, então, às loucuras que, à noite, o bairro oferecia: sexo e drogas a escolher.
O dia era diferente. A presença do perseguidor sucumbia à sua luz. Embora o perseguido nem visse o dia passar. Dormia, esquecendo de comer. Esquecia também de tomar a dose de lítio diária.
Era como um fiapo de tão magro. Pele e ossos.
Com a chegada da noite, o ritual começava. Comia qualquer coisa, mas arrumava-se com cuidadoso esmero. A intenção era parecer mais moço do que seus trinta anos. Se possível, quase um adolescente imberbe.
As noites e os dias sucediam-se assim. Rumo à beira do abismo.
Chegou a um estado deplorável. Euforia e depressão alternavam-se nas noites indormidas e nos retalhos dos dias.
Acreditava-se imune a todos os interditos.
Acreditava-se condenado aos piores castigos.
A vida era uma roleta russa.
A cada noite, o incorpóreo ficava mais agressivo, por vezes sentia seu hálito morno como uma lufada de vento de uma boca de lobo. Apressava-se, então, a encontrar um desconhecido ou conhecido qualquer para passar a noite ou a maior parte dela.
As mudanças sucessivas da euforia à depressão tornaram-se a própria droga. No intervalo entre ser um deus e ser um verme, desabou o corpo franzino num vão de porta.
Sem defesas, sentiu uma mão apertar seu punho quebradiço.
O incorpóreo tornara-se corpóreo? Não!
Era um desconhecido com quem passara uma noite desesperada qualquer.
Caridosamente foi levado ao Pronto Socorro. Sua irmã médica foi chamada, transferindo-o para o Hospital de Clínicas onde trabalhava.
Por que deixará de tomar as doses diárias de lítio?
Exames e o diagnóstico: desidratação, subnutrição, anemia,... AIDS.
Chorou até as lágrimas secarem.
À noite, a luz do celular iluminou a penumbra do quarto branco no hospital, o antes perseguido buscou o nome conhecido.
O único acréscimo às palavras de praxe: – Eu caí!

Zélia Viana Paim
(em memória de um ser amado)

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