quinta-feira, 5 de maio de 2011

Uma História Surreal

Estes fatos que passo a contar aconteceram antes que a região fosse invadida por uma fauna humana constituída de esotéricos e cientistas. Foi no tempo em que a impiedosa seca assolou a região; as manhãs e as noites eram frias, e um vento morno que principiava ao meio dia, enrolava as folhas das árvores, fazendo com que caíssem ainda verdes e forrassem o solo, deixando que os galhos nus, como dedos sem carne, apontassem para todos os lados.
– O vento da miséria! – reconheciam todos.
Éramos todos conhecedores dos caprichos do tempo, morávamos no corredor da seca, ao norte do continente. Estávamos acostumados com a seca nos longos meses de estio; entretanto, uma seca inclemente igual aquela nunca tínhamos visto, nem mesmo os cidadãos centenários. O sol jamais repousava no firmamento hostil e crestava as peles banhadas de suor. O trabalho arrastava-se pela região em morna lentidão.
Todos sofriam com fortes dores de cabeça e de garganta por causa do sol que não dava tréguas. Os açudes da região e, até mesmo, as lagoas, que sempre havia resistido à estiagem, secaram pela primeira vez. No grande rio exaurido, ainda restava um filete de água escorrendo lento no leito rachado.
Então, nesse clima de secura extrema, nossa pequena cidade tornou-se palco de fatos estranhos. Dizem que tudo começou, inclusive a seca, com a construção da estrada, desde então, precipitaram-se desencadeando na população um misto de assombro, curiosidade e redobrada fé.
O novo traçado da estrada que ligava as duas únicas cidades da região exigira a detonação de cerros, o corte de árvores e a drenagem de banhados e sangas. O traçado da estrada velha contornava esses obstáculos; embora, não passasse de um caminho largo aberto por braços fortes e pequenos tratores.
Os moradores diziam que o traçado novo deveria estar há anos no papel, porque, nos mapas rodoviários da região, a estrada constava como sendo asfaltada. Fato que causava transtorno em viajantes desavisados. Durante anos, os moradores ouviram dizer que as verbas se sucediam para a construção, mas desapareciam nos labirintos da burocracia.
O certo foi que, numa fatídica manhã, um cerro precisou ser explodido, justamente aquele da gruta da Santinha. Era uma santa antiga, de cujo nome ninguém lembrava mais. Os moradores mais velhos e crédulos visitavam-na regularmente, acendendo velas em agradecimento às mesmas graças recebidas. Ao ser mandada pelos ares, com o cerro de pedras no qual fora caprichosamente assentada, há tantos séculos que ninguém sabia ao certo, a gruta da Santinha caiu no solo intacta sem uma rachadura e com as velas ainda acesas.
Então, as peregrinações começaram; primeiro, à noite, depois, durante o dia. As pessoas comuns, por curiosidade; os antigos devotos, por fé renovada e os novos, por crença recente. Os peregrinos acenderam velas aos pés da Santinha, ao redor da gruta, pelos caminhos percorridos até ela. A luminosidade era tamanha que podia ser avistada da cidade, do campo, dos lugares longínquos, do espaço pelos satélites e destes pelo mundo.
– Os acontecimentos são estranhos, mas talvez possam ser detidos pela mão do homem – decretou um dos mais novos vereadores da cidade.
Os caminhos foram patrulhados por voluntários, e os peregrinos, constrangidos, menos Valentina, a beata.
– Ninguém pode conter os desígnios do Pai! Olhem os sinais! Olhem para o céu! Vejam como as estrelas estão brilhantes! Vejam com seus próprios olhos! – gritava Valentina, a beata que viera com a primeira leva de peregrinos, para um público cada vez maior de lentos e sedentos fiéis.
Os últimos acontecimentos estranhos se deram no mesmo dia em que esotéricos e cientistas invadiram a cidade.
O dia nasceu com uma nuvem formada por bandos de urubus pairando sobre a cidade, como se fosse um redemoinho negro. Homens armados com armas de fogo dos mais diversos calibres atiraram contra o olho do redemoinho. As inúteis saraivadas de balas, no entanto, não fizeram mossa no impenetrável. Sem sucesso, apelaram para flechas incendiárias, causando pequenos incêndios, por causa das folhas secas.
Neste mesmo dia de ações inúteis, Venerável Fortuna, o vereador mais antigo e respeitado, reeleito por décadas seguidas, fez mais um discurso inflamado contra todos. Antes de finalizar sua fala, um ataque de tosse acometeu o velho vereador que cuspiu folhas verdes e pétalas amarelas.
Aos olhos de todos os incrédulos presentes, adversários e companheiros de tribuna, foi transmutando aos poucos no que parecia ser um pé de fedegoso.
– Agora  sim, ele é um pé de fedegoso em flor! – exclamou o agrônomo Juarez, acrescentando: – Senna macranthera é o nome científico da espécie – para o microfone que uma mão anônima lhe estendia.
Os galhos da árvore recém formada do homem subiram para os céus, alcançando o bando de aves negras. Ao toque dos galhos mais altos, o impenetrável redemoinho desfez-se numa intensa luz violeta, cegando os presentes. Quando puderam abrir os olhos novamente, libélulas azuis voavam pelas flores amarelas da árvore, e gatos, às dezenas, pelo chão, rondavam as libélulas.
Só Valentina, a beata, sorria.
– Bem-feito! Eu avisei! – falou, abrindo a sombrinha estampada com flores amarelas no momento em que as primeiras libélulas começaram a cair, mudando em velas acesas ao tocarem o solo, para congraçamento dos homens e desapontamento dos gatos...

Zélia Viana Paim

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