A manhã estava muito clara, e o céu azul desbotado depois de muita
chuva parecia ter sido lavado repetidas vezes. Ela, no entanto, não reparou o
dia que parecia convalescente. Não dormira quase nada à noite, uns poucos
minutos talvez.
Não havia um fato recente para a inesperada insônia que deixou as
olheiras roxas acentuando ainda mais a cor dos olhos. O espelho do banheiro
mostrou um rosto sem beleza alguma, a não ser a cor azul violeta dos olhos,
quase como os daquela atriz, motivo de orgulho e louvor. Enquanto olhava nos
olhos e escovava os dentes, ela pensou que não importava o motivo da insônia,
porque teria o dia para se recuperar da noite indormida. A primeira providência
seria fazer um café bem reforçado.
Ao se dirigir à cozinha, contando mentalmente os passos que a
separavam do quarto, uma cena brincou com suas lembranças. As rosas colhidas
antes da chuva e cuidadosamente colocadas no vaso ao centro da mesa da sala
estavam todas despetaladas. As hastes exibiam o receptáculo e as sépalas, as
pétalas rosa antigo rodeavam o pé do vaso verde-água. Uma desolada e definitiva
beleza já apreciada antes.
Sem pensar, imediatamente, ela vasculhou a gaveta da cômoda
encostada à parede até encontrar o macio objeto de sua busca. De posse do lenço
branco de seda desdobrou-o e tentou desfazer delicadamente as marcas das dobras
com a ponta dos dedos estendendo-o na mesa. Começou então a separar e contar as
pétalas, como havia feito tantas vezes quando era ainda uma adolescente e
depois uma mulher casada e que quase nunca mais fizera desde então.
Ela pensou que tivesse esquecido, mas logo os dedos e os lábios
refizeram os detalhes do ritual que inventara na solidão há anos. A seleção das
pétalas perfeitas seguia critérios que não poderiam ser descritos em palavras.
O contato ínfimo dos dedos com a maciez da pétala, como se os sulcos que
constituíam a digital fossem delicada ventosa que a sustentassem sem deixar
mácula, obedeciam a um ritmo lento e hipnótico. O movimento lhe trouxe à
memória fatos, como partes de um rosário de lembranças.
Sobreveio a sensação de calma e de atenção concentrada que
desempenhava um papel importante para falar com as sombras do passado. Ah! as
sombras... Só as sombras sabiam que quase tudo nela era falso. Ninguém poderia
imaginar, ela pareceria tão gentil ostentando uma sabedoria tão triste em seus
olhos. Mas as sombras sabiam. Todas as suas ações escondiam uma ameaça e cada
sorriso era uma máscara de fingimento. Todos, durante toda a sua vida,
acreditaram que ela era inofensiva.
Ela havia enganado muito bem todos os professores, os pais, os
irmãos, os colegas, os amigos, os vizinhos, ele e outros que algum dia
demonstraram algum interesse por ela. Ela havia se preparado para ser assim.
Seu pensamento mais frequente era “posso cuidar muito bem de você”. Não havia
para ela nenhum perigo em ser enganadora. Ou remorso.
Àquela altura, em meio ao ritual, lembrou o momento exato em que
se viu cansada de enganar. Tornara-se uma fugitiva e se escondera neste lugar
remoto longe dele e de todos que pertenceram ao passado. Sabia que ele e os
outros a odiariam e não teriam misericórdia se por acaso tivessem que lhe
julgar culpada de falsidade. Então, ela se inclinou para frente, falando em tom
baixo e cauteloso.
— Por que estou lembrando esse momento? — e continuou,...
dirigindo-se às sombras no singular — Posso confiar em ti? Como se já não
soubesses? Por que explicar a ti me dá uma escolha? Tu deves saber tudo. Ele me
despreza, e eu... me arrependo.
Ela estava jogando. Enganando. Mentindo às sombras. Ela enganaria
mesmo se isso tornasse as coisas piores para si mesma. Simplesmente gostava
demais de enganar para parar. A verdade era uma. Fugiu porque cansou dele.
Cansou que acreditasse nela, mesmo quase oferecendo-lhe de bandeja às provas de
que era enganadora. Cansou de alimentá-lo com esperança e desespero. Cansou de
dividir a amargura dos dias partidos um a um.
Qualquer coisa que dissesse seria mentira. Jurava amá-lo. Jurava
odiá-lo. Pedia que a perdoasse pelo desamor enquanto pensava “que essa mentira
pelo menos o console um pouco antes de se tornar fonte de novos sofrimentos”.
Sabia, no entanto, que estava mentindo para si mesma. Nesses momentos, o que
ela queria mesmo era um minuto livre dele. Ele era um egoísta no seu amor por
ela. Enganava-se pensando que bastava desejar o amor dela, para que ela o
desse. Ela desejava um nada para ele. Voltando a falar às sombras
sussurrou:
– Tu me decifras qual esfinge! Mas te enganas se pensas que eu
quero esquecer. Quero levar comigo o minuto de abismo do primeiro passo para o
longe. O momento de recusar a força de uma vida moldada. Recusar a predestinação
de ser igual a elas. Recusar tudo, tanto a inocência quanto o pecado. Portanto,
não me julgues apenas por recusar trazer nos olhos, além da minhas, as lágrimas
de outro.
Então com um sorriso que parecia triste, um dar de ombros e um
meneio de cabeça que desmentiam a tristeza, como se cumprimentasse um
adversário inteligente que tivesse feito um bom movimento no tabuleiro de
xadrez, ela recolheu as pétalas juntando as pontas do lenço. Abriu a janela e
soltou as pétalas ao vento e as sombras... ao tempo.
Zélia Viana Paim
Imagem/Foto de Zélia Viana Paim
Sombras, pétalas, lembranças, amores...
ResponderExcluir