terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A mariposa


Alas de Mariposa – Anthony Ross

Valquíria decidiu ir embora da casa materna onde morava com a sua irmã Jade e o marido desta, Ludovico. A decisão era definitiva; embora, amasse e admirasse Jade, muito mais do que às outras irmãs e soubesse que ali sempre seria seu lugar, se essa fosse a sua vontade. Ela ansiava seguir o caminho, cujo traçado invisível a levaria ao seu destino final, conforme explicou à sua irmã.
Com a morte da mãe sentia-se à deriva num mar que se alternava entre calmaria e tormento, sem um farol que lhe guiasse a um porto seguro, onde pudesse salvar-se dos reveses do devir. Sem timo nem rumo, decidiu partir, confiando que chegaria ao lugar que, nesta vida, lhe fora destinado encontrar. Sete meses se passaram, desde o dia da decisão ao dia marcado para a partida. Embora isso não fosse decisão que se tomasse, pois ela sabia correr o risco de não partir jamais.
Desde que se conhecia por gente, ela sabia-se diferente das outras irmãs. Diferença que com o findar dos anos de meninice a aproximava mais e mais de sua mãe, que, por sua vez, também era diferente das outras mães. Lisa, a mãe de Valquíria, tinha permanentes no rosto um sorriso a curvar-lhe o canto dos lábios para cima e uma alegria que fazia brilhar os olhos negros como a noite.
Às vezes, a menina julgava entrever nesse conjunto, que parecia tão doce e meigo, uma ironia brutal. Esta coincidia com as noites de lua quando Jade benzia a irmã fazendo o sinal da cruz com água benta na sua testa, boca e peito à altura do coração. No instante mesmo em que se iniciava esse ritual, erguia-se outro, numa conversação, numa risada fina audível somente para Valquíria. A esse ritual secreto, que lhe preenchia de um amor imenso e que lhe aguçava todos os sentidos, ela se entregava como um instrumento musical ao seu afinador.
Entre lembrança e esquecimento, os meses de espera passaram.
Na estação de trens, Valquíria comprou passagem para a cidade em cujo nome seus olhos bateram ao buscarem um lugar na lista escrita num painel desbotado: Poço dos Espíritos. Na despedida, Jade, mais uma vez, fez o ritual de benzedura da irmã. Desta última vez Valquíria tinha lágrimas nos olhos e uma emoção que lhe apertava a garganta com mãos de ferro e afligia o peito em cujo âmago o coração batia acelerado.
O trem partiu.
A tarde era morna e a noite caía devagar nos campos, matas, rios, vilas, cidades. Nas estações de trens, embarcavam e desembarcavam pessoas. Novamente desfilavam campos, matas, rios, vilas, cidades e, nas estações de trens, embarcavam e desembarcavam pessoas. Cansada de estações que se sucediam iguais a si mesmas, dos movimentos desiguais das pessoas, do barulho e do sacolejar ritmado do trem, Valquíria trancou a porta da cabine onde viajava sozinha, cerrou as cortinas das janelas que davam para o corredor, deitou-se, dormiu e sonhou.
No sonho, seguia uma mariposa, cujo colorido das asas formava desenhos regulares, do castanho ao branco, que variavam de acordo com a mais tênue alteração de luz chegando ao lilás. Embrenhava-se por matas desconhecidas até chegar à frente de um casarão cercado por um sem par de frondosas árvores em flor. Nesse lugar, perdia de vista a mariposa e espreitva por entre as grades do portão um vulto de homem na janela.
No casarão, Augusto olhava a lua cheia que iluminava a terra, motivo de uivos e ganidos dos cães ao redor. Um vento morno percorreu mansamente o peito nu enquanto uma enorme mariposa pousou no mosqueteiro de tule do berço onde dormia a recém nascida. Augusto sorriu ao lembrar que, na sua infância, Branca, a cozinheira, lhe contara histórias sobre as mariposas.
– Estas mariposas são mulheres bruxas que se transformam e bebem o sangue de recém nascidos, sugando pelo umbigo.
Na cama, ao lado, a mãe da menina parecia dormir com um sorriso a curvar-lhe o canto dos lábios para cima. Ele julgou ver nesse conjunto, que parecia tão doce e meigo, a sombra de uma ironia. Uma sombra apenas, quase nada como no primeiro dia em que a viu.
O trem corria compassado e célere no dorso do mundo.
Na cabine Valquíria acordou com raios dourados penetrando pela fresta da janela. Foi assim que, no seu presente, as sombras douradas da fresca manhã encontraram o trem que a carregou até Poço dos Espíritos. Ao desembarcar, o silêncio assustou-a. A estação de trens estava vazia, as ruas estavam vazias, o mundo parecia vazio como o recomeço dos tempos. Então ela o viu. Longos cabelos negros, corpo esguio e olhos serenos.
– Ele é mesmo belo e parece feliz – murmurou para si mesma.
A certeza era desnecessária, porque o encantamento dela pelo cumprimento de parte seu destino sobrepunha-se.
Augusto, por sua vez, se perguntou, então, se a força dos acontecimentos no espaço e no tempo não era apenas um amontoado de coincidências. Justo naquela manhã dourada e fresca, uma figura de mulher brincou com seus sentidos e com sua razão. Por um segundo ele pensou que, bela e imóvel, ela bem poderia ser uma aparição, com o vento fazendo esvoaçar as vestes leves que delineavam o corpo perfeito.
Os dois seguiram mudos ao encontro do outro, obedecendo à força da atração que agiu sobre eles e a qual nem pensaram em resistir. Esqueceram-se de que a paixão era repentina como a morte desde sempre. Valquíria sentiu na boca o doce gosto do mel. Sorriu. Augusto por um instante julgou vislumbrar no conjunto doce e meigo a sombra de uma ironia. Por um instante pensou em retroceder ou estancar os passos que o levavam para ela.

Zélia Viana Paim

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