sábado, 29 de outubro de 2011

As Pétalas Rosa Antigo




A manhã estava muito clara, e o céu azul desbotado depois de muita chuva parecia ter sido lavado repetidas vezes. Ela, no entanto, não reparou o dia que parecia convalescente. Não dormira quase nada à noite, uns poucos minutos talvez.
Não havia um fato recente para a inesperada insônia que deixou as olheiras roxas acentuando ainda mais a cor dos olhos. O espelho do banheiro mostrou um rosto sem beleza alguma, a não ser a cor azul violeta dos olhos, quase como os daquela atriz, motivo de orgulho e louvor. Enquanto olhava nos olhos e escovava os dentes, ela pensou que não importava o motivo da insônia, porque teria o dia para se recuperar da noite indormida. A primeira providência seria fazer um café bem reforçado.
Ao se dirigir à cozinha, contando mentalmente os passos que a separavam do quarto, uma cena brincou com suas lembranças. As rosas colhidas antes da chuva e cuidadosamente colocadas no vaso ao centro da mesa da sala estavam todas despetaladas. As hastes exibiam o receptáculo e as sépalas, as pétalas rosa antigo rodeavam o pé do vaso verde-água. Uma desolada e definitiva beleza já apreciada antes.
Sem pensar, imediatamente, ela vasculhou a gaveta da cômoda encostada à parede até encontrar o macio objeto de sua busca. De posse do lenço branco de seda desdobrou-o e tentou desfazer delicadamente as marcas das dobras com a ponta dos dedos estendendo-o na mesa. Começou então a separar e contar as pétalas, como havia feito tantas vezes quando era ainda uma adolescente e depois uma mulher casada e que quase nunca mais fizera desde então.
Ela pensou que tivesse esquecido, mas logo os dedos e os lábios refizeram os detalhes do ritual que inventara na solidão há anos. A seleção das pétalas perfeitas seguia critérios que não poderiam ser descritos em palavras. O contato ínfimo dos dedos com a maciez da pétala, como se os sulcos que constituíam a digital fossem delicada ventosa que a sustentassem sem deixar mácula, obedeciam a um ritmo lento e hipnótico. O movimento lhe trouxe à memória fatos, como partes de um rosário de lembranças.
Sobreveio a sensação de calma e de atenção concentrada que desempenhava um papel importante para falar com as sombras do passado. Ah! as sombras... Só as sombras sabiam que quase tudo nela era falso. Ninguém poderia imaginar, ela pareceria tão gentil ostentando uma sabedoria tão triste em seus olhos. Mas as sombras sabiam. Todas as suas ações escondiam uma ameaça e cada sorriso era uma máscara de fingimento. Todos, durante toda a sua vida, acreditaram que ela era inofensiva.
Ela havia enganado muito bem todos os professores, os pais, os irmãos, os colegas, os amigos, os vizinhos, ele e outros que algum dia demonstraram algum interesse por ela. Ela havia se preparado para ser assim. Seu pensamento mais frequente era “posso cuidar muito bem de você”. Não havia para ela nenhum perigo em ser enganadora. Ou remorso.
Àquela altura, em meio ao ritual, lembrou o momento exato em que se viu cansada de enganar. Tornara-se uma fugitiva e se escondera neste lugar remoto longe dele e de todos que pertenceram ao passado. Sabia que ele e os outros a odiariam e não teriam misericórdia se por acaso tivessem que lhe julgar culpada de falsidade. Então, ela se inclinou para frente, falando em tom baixo e cauteloso.
— Por que estou lembrando esse momento? — e continuou,... dirigindo-se às sombras no singular — Posso confiar em ti? Como se já não soubesses? Por que explicar a ti me dá uma escolha? Tu deves saber tudo. Ele me despreza, e eu... me arrependo.
Ela estava jogando. Enganando. Mentindo às sombras. Ela enganaria mesmo se isso tornasse as coisas piores para si mesma. Simplesmente gostava demais de enganar para parar. A verdade era uma. Fugiu porque cansou dele. Cansou que acreditasse nela, mesmo quase oferecendo-lhe de bandeja às provas de que era enganadora. Cansou de alimentá-lo com esperança e desespero. Cansou de dividir a amargura dos dias partidos um a um.
Qualquer coisa que dissesse seria mentira. Jurava amá-lo. Jurava odiá-lo. Pedia que a perdoasse pelo desamor enquanto pensava “que essa mentira pelo menos o console um pouco antes de se tornar fonte de novos sofrimentos”. Sabia, no entanto, que estava mentindo para si mesma. Nesses momentos, o que ela queria mesmo era um minuto livre dele. Ele era um egoísta no seu amor por ela. Enganava-se pensando que bastava desejar o amor dela, para que ela o desse. Ela desejava um nada para ele. Voltando a falar às sombras sussurrou:
– Tu me decifras qual esfinge! Mas te enganas se pensas que eu quero esquecer. Quero levar comigo o minuto de abismo do primeiro passo para o longe. O momento de recusar a força de uma vida moldada. Recusar a predestinação de ser igual a elas. Recusar tudo, tanto a inocência quanto o pecado. Portanto, não me julgues apenas por recusar trazer nos olhos, além da minhas, as lágrimas de outro.
Então com um sorriso que parecia triste, um dar de ombros e um meneio de cabeça que desmentiam a tristeza, como se cumprimentasse um adversário inteligente que tivesse feito um bom movimento no tabuleiro de xadrez, ela recolheu as pétalas juntando as pontas do lenço. Abriu a janela e soltou as pétalas ao vento e as sombras... ao tempo.

Zélia Viana Paim
Imagem/Foto de Zélia Viana Paim

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Enquanto a Terra gira


As nuvens pinceladas no horizonte pareciam brasas incandescentes, e o sol, um ponto vermelho como sangue. A luz do entardecer acentuava o brilho dos olhos escuros e mansos de Lúcia. Por trás da mansidão do olhar, perpassava um sorriso irônico, mas essa face velada era um vislumbre apenas para ela na sua imagem refletida no espelho. Lúcia morava com Pedro na mesma casa, que fora de sua bisavó, erguida no meio do pampa.
Era uma casa de dois andares, com duas torres separadas por uma saleta forrada de prateleiras repletas de livros antigos e raros. O quarto dela ficava na torre norte, o lado iluminado, o dele ficava na torre sul, o lado sombrio. Lúcia quase não saía de casa, e Pedro vivia a vagar pelos campos de revolução, degola e morte.
Lúcia procurava não pensar no perigo dessas andanças. Aprendera que se rebelar contra a hora da morte era tarefa vã. Lera nos livros que as servas do Destino são incansáveis em fiar o fluxo da existência humana, em tecer o ritmo da criatura e marcar a hora da morte. O corte do fio da vida é parte do trabalho da serva, obedecendo a um capricho do seu senhor: o momento definitivo de se abandonar o corpo.
Agora a luminosidade alongava a sombra de tudo sobre terra, os caules e troncos das árvores mais próximas tinham um tom rosado. A noite logo cairia com um manto negro ao redor. O tempo fluía devagar como uma reza de beatas na saleta, onde Lúcia lia. Os olhos arderam, ela levantou-se e acendeu o lampião, procurando não pensar em Pedro andando sabe-se lá onde, à mercê de maragatos e ximangos.
Pedro e Lúcia eram os últimos que restavam da família. Eram da mesma idade, haviam sido criados juntos e, assim, viviam há mais de um par de décadas. Agora, as volúveis opiniões dos homens não os impressionavam mais. Concordavam que eram as forças impalpáveis do universo que os amedrontavam, moviam-nos como marionetes e se dedicavam a fazer deles os seres que eram.
Foi assim que, no tempo próprio em que cada espécie encontra um par, não encontraram ninguém, a não ser um ao outro. Sabiam também ter direito ao amor, à força universal da atração que justifica a união dos seres, engendrando as linhas de descendência que acabam por ligar a todos: os deuses, os homens e mesmo os deuses e homens. Eles seriam sempre únicos; pois, com os dois, toda a história dos seus encontrara o fim.
Sem pensar em Lúcia, Pedro chegou ao alto do cerro do qual se avistava o horizonte ao longe. Era um cerro de pedra de cume achatado no qual dormitavam lagoas eternas e cristalinas. A chegada foi um instante antes da hora em que o dia se transforma em noite, e todos os seres e as pedras perderam seus contornos próprios. Então, tudo se tornou uno.
Pedro era um duplo: carente e andarilho, herança da mãe; corajoso e esperto caçador, herança do pai, irmão de Lúcia. Há anos, desde o começo da revolução, passava os dias e parte da noite campeando, olhando aqui e ali, desconfiando de seus passos, vigiando seus flancos, esperando ser atacado a qualquer momento por homem ou sombra.
Ele desertara, por causa de Lúcia. Mas mesmo sem tomar parte nas batalhas, estava na guerra como todos. A morte rondava a pé e a cavalo pelos pagos. Lembrava a si mesmo disso, como se estivesse se desculpando pelo cheiro de sangue e de morte entranhado nas ventas. Vivia apartado dos homens, não tinha amigos nem inimigos. Não sabia o que procurava, não defendia um ideal, apenas desferia golpes ao acaso, ao léu, ao vento.
A revolução havia passado perto dali, onde ele vivia com Lúcia. Tudo que havia sido destruído seria, novamente, construído. Os bichos e os homens que sobreviveram voltariam a morar na antiga morada. Assim era a guerra, assim seria a paz, enquanto algures o mal não revivesse. O terror e a discórdia, o amor e a paz se alternavam sempre, às vezes, na mesma geração de homens.
No alto do cerro, Pedro sentia um torpor penetrar por seus poros e paralisar todos os seus músculos e nervos. Não se sentia mais vigiado, todas as preocupações abandonaram seu coração, a mente desanuviara-se, a vida ganhara esplendor. Pedro desejou ter, por um momento, o poder dos homens sábios ou santos para intervir de maneira decisiva nos acontecimentos do mundo. Mudar o seu destino ligado ao de Lúcia desde sempre, mudar a condição imposta para viver esse amor insano.
O latido de cães, ao longe, resgatou Pedro do torpor e do quase arrependimento. Abriu os olhos para a noite soturna. Toda terra ao redor, até onde seus olhos podiam ver ali do alto, estava tomada pela noite mais escura de sua existência. Somente nas partes baixas que formavam os pequenos vales onde corriam arroios e sangas pairava uma névoa esbranquiçada, cujos fios no topo das árvores se enrascavam como inimigos ou como amantes.
Pedro retomou seus passos por caminhos de breu. Os cães, que ouvira antes, anunciaram a sua chegada em casa. Ao aproximar-se de Lúcia, um novo estado de espírito se apoderou dele, sentia-se decidido e sereno. Sabia que Lúcia estava sentindo exatamente o mesmo.
Sabiam que nenhum dos dois mudaria depois de ter sentido na pele a carícia das mãos do outro. Aqueles seriam eles para o resto da vida. E assim, sem se perguntarem se outros amantes apaixonados antes deles teriam sentido um amor capaz de proporcionar tamanha infelicidade e prazer, ficaram deitados juntos. Enquanto a Terra gira.

Zélia Viana Paim
Imagem Terra_Gaia