Era o início da
estação...
O tempo corria veloz
e faminto. Os moradores na cidade ainda adormecida não assistiram a madrugada
soturna que estendia seu manto pelo mundo. O dia quase não amanheceu. As cores da manhã estenderam-se
e não deixaram lugar para o dia que pareceu emendar com a noite. Finas colunas
de um nevoeiro cinza subiam das poças nos caminhos e se enrascavam feito
amantes.
Pedro com os
olhos nos sapatos úmidos e estropiados pouco se importava com o dia. Caminhava,
deixando-se levar pelo sentimento miserável nascido da paixão proibida. A noite
ao léu durou uma eternidade. Desejou sinceramente, depois com remorso, que uma
emergência o chamasse de volta aos seus pacientes no hospital, arrancando-o
daquele pesadelo insuportável povoado de imagens que procurava não ver.
Muitas vezes
antes espreitara a mulher pela qual estava louco de paixão sentindo-se culpado
de um sério delito, um réu prestes a ser julgado pelo pecado da carne. Mas... suportando
o gume de uma lâmina encostar sua garganta, cravava os olhos em nesgas da pele
branca e nua da mulher que desejava. Com a respiração suspensa aproximava-se
reprimindo um gesto de afeto; ao menor movimento dela, fugia sob seus próprios passos.
No transcorrer
daquela noite, depois da festa de casamento dela, caminhou solitário pelo mundo
afora, arrastando o corpo massacrado pelo infame desejo. Havia decidido evitar
aquela que agora era a mulher de seu irmão e guardar seu amor, como uma fera
enjaulada no fundo de si mesmo. Sabia, no entanto, que havia sido um esforço inútil.
Sofria encarcerado na mesma jaula, dilacerado pela fera que não ousara domar.
Mal sabem ou
querem esquecer que o destino tece com um fio falso a felicidade de uns e a
infelicidade de outros. Nesse enredar de vidas, tudo é passível de mutação. E, no
enredo dessa ordem cósmica, eterna é a impotência dos homens frente aos (des)mandos
do destino.
[...]
As horas dos
dias arrastavam-se, como se os ponteiros do relógio carregassem o peso de todos
os segundos marcados por eras sobre eras. Quando não estava no hospital, Pedro
fugia a passos largos por caminhos inventados pelo desespero que o levava cada
vez mais longe de casa, das ruas, dos últimos casebres da cidade, rumo à
escuridão das noites que se sucediam iguais a si mesmas.
Então, um vento
morno principiou a soprar devagar na hora mais escura de uma daquelas noites
iguais. Na manhã, o vento insistia, levantando a terra em seu caminho, arrancando
as folhas dos galhos das árvores, varrendo-as para os cantos dos muros, os
fundos dos becos e os vãos dos portões. As portas batiam, como se fossem
obrigadas a encerrar segredos para sempre.
Há meses ela disfarçava
o sentimento que pouco a pouco se apoderou de todo seu ser. No início estava
segura de que jamais trairia o marido. Depois percebeu que em sua alma já o
traíra. O corpo era apenas instrumento do desejo que crescia nela ora como um
martírio ora como um bem supremo.
Há meses o céu amanhecia encoberto como se fosse parte do cenário preparando
o dilema dos dois. Durante o dia, um tom cinza uniformizava o aspecto de tudo
que havia. No interminável cinza, ela não
cuidou mais de esconder de si o desejo implacável que sentia.
A mata, na qual
se embrenhou no encalço de Pedro, encobria desejos secretos. Encontraram-se. Sem
dizer palavra, despiram-se, estenderam suas roupas no chão de folhas caídas e
sobre elas se amaram. Risos, sussurros de amor, gemidos de prazer e cânticos
anônimos ressoaram no espaço afora.
[...]
Era o fim da
estação...
Trovões feriram
o espaço aparentemente calmo. Grossos pingos de chuva molharam a terra, como se
o céu quisesse chorar por toda a mágoa dos traídos. A chuva, no entanto, não preocupou
ninguém. Os moradores da cidade chegaram mesmo a agradecer por aquela água
generosa e abundante que, pensaram eles, haveria de fortalecer as plantações e
resultaria em abundante safra.
Mas os dias e
noites passaram, e a chuva aumentou até os campos ficarem alagados e as águas
se avolumarem. O rio transbordou de seu leito com a violência contida durante
meses. Colheitas, árvores, animais, cercas, muros, casas, estradas, pontes,
tudo aquilo que restava vizinho às margens transbordadas do rio foi sendo
tragado pelas águas.
Benzedeiras
tentavam acalmar a tempestade nas janelas dos quatro cantos da cidade, fazendo
o sinal da cruz com as palmas bentas no Domingo de Ramos. De nada adiantou, as
nuvens formavam uma camada tão densa e baixa que pareciam anunciar o próprio
derramamento do céu. Era novamente o dilúvio sobre a Terra. A chuva caía com
furor e se tornava violentas enxurradas.
Na cidade mal
dormiam nos dias e noites em que as águas tomavam conta do mundo. Os trovões
ribombavam. O ar era um odor de tronco úmido apodrecido e deitado ao solo das
matas. A noite era um breu. As janelas e o telhado das casas estremeciam como
se um ente sem corpo se jogasse sem piedade sobre elas, querendo esmagar a
todos.
Pedro mudou-se
para o hospital, no socorro às vítimas nunca mais pregou os olhos; ela, se
dormia, acordava com o coração aflito, cansada de sentir a presença da desgraça.
Rezava terços pedindo perdão, fazia promessas de sufocar o desejo arrebatado
pelo irmão do marido. O céu pareceu responder e pouco a pouco se fez o que
parecia ser a paz na natureza. A chuva estancou. Mas o coração dela estava
certo, o destino é voraz na satisfação de sua vontade desatinada.
À luz de
lanternas e de lampiões, o irmão de Pedro comandava as frentes de trabalho na
ponte que atravessava o rio que banhava a cidade. Um passo em falso... e o
destino selou a sorte dele. No leito cheio do rio, ele lutou contra a violenta
correnteza, mas sua coragem foi vã. A fúria das águas acabou por tragá-lo,
sufocando seu último sopro de vida.
Um conhecido
trouxe a notícia do seu desaparecimento. Ela não quis acreditar. A ausência da
materialidade do corpo não atestava a imaterialidade da morte. Com olhos secos,
ela se pôs a rondar por dias seguidos as águas barrentas do rio, procurando
ouvir em seu murmúrio notícias do paradeiro dele. Mas do murmúrio das águas ouvia
histórias outras que não queria escutar. Aquele era um rio traiçoeiro carregado
de lamentações profundas e memórias perdidas.
Zélia Viana Paim
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