Joaquim
nasceu com a sina de descobrir o que a
natureza havia subtraído aos humanos olhares e morrer escondido nas partes mais
esquecidas da terra. Vivendo sua dita ou desdita, acerto e desacerto, ele
vagaria pelo mundo percorrendo caminhos que parecia conhecer antes de ter
tocado com seus pés e olhado com seus olhos mortais.
No correr dos dias, das noites e dos anos, Joaquim foi parar
num lugar qualquer desolado e deserto. Enquanto seguia com os olhos vagarosos o
voar de um pequeno gavião, o cavalo em
que montava assustou-se com uma cobra e o derrubou. Ao cair, perfurou a coxa
esquerda na ponta de um crucifixo enferrujado encravado em uma pedra
semi-enterrada na terra arenosa batida pelo vento.
Joaquim
pensou que morreria ali mesmo esvaído em sangue. Para morrer sossegado sem o
estorvo das aves de rapina que arrancavam os olhos dos moribundos, arrastou-se
até as pedras que restavam das ruínas da missão jesuítica que despontava no
areal. Sentou-se e limpou o ferimento com o que restava de água, estancando o
sangue o melhor que pode, deixando-se ali ficar.
Dias e noites passaram como folha ao vento. Joaquim
sonhou com uma vertente de água fresca e cristalina, na qual saciava sua sede
desesperada de homem sem sangue. Na manhã de um dia acordou com a fonte febril
e ouviu um leve rumor de água que ecoava por trás das raízes de uma figueira
brava nascida entre as pedras. Ao arrastar-se até as raízes expostas, uma dor
lancinante lhe golpeou a cabeça e a coxa.
Joaquim acreditou, então, que no vão que entrevia por
entre a árvore e a pedra, poderia encontrar um bom túmulo, se o barulho de água
correndo fosse somente delírio. Erguendo-se, passou no espaço apertado,
arranhando as costas e o peito entre raízes e pedras. O suplício se prolongou
por metros.
Ao final da passagem torturante, encontrou alívio e uns
poucos degraus de pedra rasos e gastos que, terra abaixo, levavam a um amplo
espaço. Joaquim fechou os olhos à semi-escuridão e à dor. Esperou acalmar o
latejar na ferida, enquanto suas narinas se dilataram como as de um animal
farejando o ar gelado, antigo e doce.
Ao abrir os olhos, viu na parede de pedra ao lado da
entrada a pequena vertente, da qual escorria um filete de água que corria por
um canal fino e fundo sulcado na pedra. À sua margem, Joaquim se atirou como um
demente e bebeu a ponto de afogar-se, de ter um acesso de tosse e de vomitar
quase toda água ingerida.
Então um frio extremo percorreu seu corpo, gelou seus
músculos e penetrou seus ossos. Joaquim sentiu a alma desprender-se de seu
corpo mortal e ser levada pelo vento a percorrer os corredores do tempo
interminável. A imagem de uma mulher apareceu-lhe entre quatro anjos que, sobre
cuja cabeça, emborcavam uma cornucópia pejada de frutos maduros. Um enxame de
abelhas, zumbindo e se movendo no ar como se um ser vivo e único, desfez a cena.
A alma fascinada pela beleza do movimento seguiu as
abelhas. De repente, imenso abismo separava-a delas que continuavam a rolar no
espaço como um animal mutante ou nuvem corredeira. O espanto da pobre alma foi
maior quando percebeu que aquele abismo era o lugar onde deixara o seu corpo
delirante. Mas o momento definitivo de abandoná-lo e tornar-se sombra não havia
chegado ainda para Joaquim. A hora de espanto e névoa passou.
A noite caiu devagar e silenciosa tomando conta de tudo,
até desfazer-se em dia lá fora. Um zumbido abafado acordou Joaquim. Com o
coração aos saltos e o sangue pulsando nas têmporas, encostou o ouvido ao lado
de uma pequena fenda na pedra que pareceu gemer ao contato humano. Encontrou a
colméia repleta de mel que gotejava da pedra mais abaixo.
Joaquim sentou-se, deslizando as costas na parede áspera.
Alisou o chão carinhosamente, de um lado e de outro das pernas estiradas. Com
os dedos trêmulos, seguiu as rachaduras do solo. Entre delírio e lucidez,
demarcou uma pedra de mais ou menos um metro quadrado.
Deixando de lado a pedra, tratou então de cuidar de si
mesmo, lambeu com vagar o mel que gotejava, bebeu a água como um gato beberia,
lavou e colocou mel no corte o mais fundo que podia suportar. Sentiu um cansaço
imenso. Quando enfim julgou ter forças, retirou a terra do sulco que delimitava
a pedra e a deslocou, ignorando as fisgadas de dor e o filete de sangue que
escorria da ferida.
Sob a pedra, encontrou a tampa de uma arca finamente
trabalhada em cedro, com embutidos de ouro e madrepérola e entremeados de
vários relicários, pequenos espelhos e lindas pérolas, repleta de moedas de
ouro.
Fechou os olhos, procurando acalmar o coração aos pulos
enterrou as mãos na arca e as enchendo de moedas levou-as ao rosto como se o
lavasse. Ao contato com o metal frio, Joaquim foi tomado por um frenesi, uma
gargalhada sem fim que sacudia todo seu corpo. Da ferida aberta, escorreu com
força um sangue vermelho, vivo, fino e doce que, em vão,... Joaquim tentou
estancar.
Zélia
Viana Paim
Imagem sudoeste do Rio Grande
do Sul, Brasil