terça-feira, 31 de maio de 2011

O Perfume das Magnólias


Cronistas antigos contaram que a cidade chamada Arvoredo desapareceu da face da Terra por obra do desatino completo de seus moradores.
Arvoredo era a última cidade localizada no extremo do país, distante pouco quilômetros da margem que delimitava o continente. A cidade sempre foi pequena, não só pelo espaço físico que abarcava, mas a mentalidade de seus habitantes também era tacanha. Assim os qualificaram os cronistas da época por delicadeza ou bondade.
Nos primórdios da cidade, seus fundadores traçaram ruas retas, que se cortavam em ângulos retos e o desenho das quadras se aproximava do tabuleiro de xadrez. As calçadas foram pontuadas com mudas nativas, e as ruas largas receberam no canteiro central mudas de magnólia branca, orgulho dos cidadãos de Arvoredo.
A cidade cresceu pouco, os pioneiros morreram e as gerações passaram como folha ao vento. Durante muitos anos, nada foi construído ali, nenhuma calçada ou rua, nenhum galpão ou casa, nenhum muro ou cerca, nem mesmo um poço artesiano, que, nos primórdios, também era o orgulho de cada morador.
O governo também não mudava; apenas se alternava entre duas famílias, os Alonso e os Garcia. Nem a razão para esse continuísmo era questionada. Acontecimentos, que não convém trazer à tona, levaram os seus concidadãos a pensar: “nada mais natural, pois eles são os donos de quase toda Arvoredo”.
A maioria dos moradores de Arvoredo tinha um aspecto cansado e triste. A pele enrugada e seca, os cabelos opacos, os olhos baços, os lábios contraídos. Andavam com paços miúdos e rápidos, sem tempo para um dedo de prosa. Pareciam coelhos de estimação de duas Alices, muito atarefados em compromissos urgentíssimos e inadiáveis, ou, simplesmente, assustados.
Fato é que os habitantes se acostumaram com a cidade mal cuidada, como se ela não fosse deles. O mato crescia nas ruas, e o lixo acumulava-se nas sarjetas. Na época das chuvas, os ratos, ratazanas e outros bichos menos nojentos socorriam-se, boiando em cima dos entulhos carregados pela água suja, que rolava pelas ruas e escorria cidade abaixo rumo ao rio assoreado.
Tal cenário contrastava com a casa bem cuidada de alpendre alto, que exibia em sua fachada duas janelas amplas, como grandes olhos voltados para a cidade. A porta avantajada era o orgulho dos proprietários, feita de um único tronco de cedro rosa, entalhada com cachos de uva e hortênsias que rodeavam um brasão com as letras A e G entrelaçadas. Essa era uma casa de comércio, onde os moradores de aspecto cansado e triste trabalhavam. Facas, facões, serras, machados eram os produtos vendidos, aos quais se somava a grande novidade da época, a motosserra.
Desde que o primeiro dos Alonso havia assumido o poder, mal clareava o dia, uma voz anônima suave e envolvente bombardeava os cidadãos com slogans sobre a excelência do seu sistema de governo. Os cidadãos de Arvoredo não se questionavam com desdobramento inexplicável do discurso que se produzia neles, nem sequer se ouviam repetindo as mesmas palavras ditas.
Os cronistas contaram que o desatino começou quando a mesma anônima voz passou a propalar, em decibéis apropriados, do alto-falante instalado em altíssimo poste no centro da praça, as maravilhas proporcionadas pelo uso da motosserra. A voz flutuava por todos os lados, dissolvida no ar que respiravam. Era a verdade de Arvoredo; qualquer sentimento de hostilidade seria inútil, ou mesmo impensado.
Então o discurso e os fatos fundiram-se. Um lote de terra arborizado teve suas árvores cortadas em pequenas toras de metro e meio. Em questão de horas, aquela parte da Terra estava limpa de frondosas espécies, sob o olhar entorpecido dos espectadores. Nenhum deles jamais questionou o poderio desenfreado do homem armado contra a árvore.
Certo dia, a estranha febre, de que falaram os cronistas, alastrou-se. Principiou quando todos os homens adquiriram a própria motosserra, cujo pagamento, dividido em incontáveis vezes, pesava em seus parcos ganhos. Mas o peito de cada um estufava como o de um sapo cururu a um simples olhar para a máquina. Sentiam-se poderosos alçados de simples homens ao status de proprietários da máquina.
Os fins de semana passavam num afã incansável. Principiaram pelo corte das araucárias centenárias, depois pelo corte dos eucaliptos plantados há quinze anos. Cortaram as árvores nativas: os mognos, os angicos, as aroeiras, os ipês e os cedros; a seguir, cortaram as árvores frutíferas: as laranjeiras, os pessegueiros, os limoeiros, as goiabeiras, nem as parreiras escaparam; por último, derrubaram as magnólias. A cada semana a derrubada ia mais longe.
Segundo o que contaram os cronistas, demorou um tempo considerável, mas não restou uma árvore sequer nos pátios, nos terrenos baldios, nas ruas, nas praças, nos campos, nas margens do rio e dos córregos do município inteiro. À medida que as árvores tombavam os animais se afastavam dos homens e do barulho. Os gatos foram os primeiros, seguidos pelos cães, galinhas, vacas de leite e suas crias.
A cidade parecia mais limpa sem árvores. A limpeza era glorificada pela voz anônima e suave. Todos sorriam uns para os outros satisfeitos, passaram a andar com a cabeça erguida, com paços mais lentos, reuniam-se em grupos e conversavam sobre a transformação. O olhar se estendia ao longe sobre a terra nua como uma chaga, alcançando o horizonte e mais além, afirmavam que podiam ver a curvatura da Terra.
Os compradores de madeira chegaram das regiões próximas e distantes, comboios de caminhões saíam da cidade, carregados de troncos. Os habitantes de Arvoredo encheram os bolsos, antes vazios. Tempos depois da venda da madeira, o clima da região alterou entre calores infernais durante o dia e frios glaciais à noite.
Os moradores passaram a andar cada vez mais rapidamente, com a cabeça baixa, quase enterrada no peito. O sol violento e as escassas sombras das casas forçavam aqueles que se arriscavam a sair às ruas a andar de lado rente as paredes e muros. De humano, não se ouvia um balbucio. De bicho, nenhum som sequer, nem de pássaro, nem de sapo, nem de grilo. Um silêncio sepulcral reinava em Arvoredo.
Os habitantes notaram, com estranheza, a falta que sentiam de coisas bizarras como o farfalhar das folhas à passagem de delicada brisa; os galhos batendo nas vidraças, embalados pela chuva; o hábito dos pássaros, ao amanhecer, voarem baixo ao redor das árvores do pernoite; o tremeluzir das gotas de orvalho nas pontas das folhas antes de caírem ao solo; o perfume das araucárias e dos eucaliptos. Entre todas as estranhezas, sentiam mais a falta do perfume das gigantescas flores das magnólias.
Os cronistas contaram que ninguém soube jamais explicar os motivos que levaram aos acontecimentos que se seguiram. Os habitantes começaram a sangrar pelas narinas; primeiro, foram os Alonso; depois, os Garcia, contagiando as pessoas que cuidavam deles. O estranho sangrar se alastrou pelas famílias inteiras de Arvoredo que não puderam fugir. Não houve tratamento que impedisse o sangrar, foi como se o organismo de cada um não pudesse, ou não quisesse mais, conter em si a própria seiva.
Aqueles que se mantiveram em pé por último tiveram que enterrar os mortos em vala comum, não havia madeira nem tempo para esperar mais caixões. Por fim, quando não restava mais morador em Arvoredo, a tarefa de enterrar os corpos insepultos coube aos habitantes da cidade vizinha, não por se importarem com os fatos ocorridos, tampouco por solidariedade humana, mas por não suportarem mais o mau cheiro que tornava o ar ainda mais irrespirável na região.
Os cronistas contaram que, muito tempo depois de tudo ter passado, a montanha de terra que cobria a vala comum esquentou, expelindo um vapor formado pela decomposição dos corpos. O vapor subiu como um fio escuro ligando a Terra ao Céu. Pairou sob a região e aos poucos condensou, formando nuvens espessas e imensas que se derramaram em chuva ácida e contínua por dias. O nada que restava de vida no município de Arvoredo desfez-se enfim. O solo do município apodreceu. Nada mais nasceu naquela parte da Terra onde, outrora, localizava-se a cidade de Arvoredo, contaram os escritos dos antigos cronistas.

Zélia Viana Paim
Imagem Magnólia Grandiflora

terça-feira, 17 de maio de 2011

Tempo de Contrários

La Gallega, a pequena caravela, singrava o mar profundo há mais de dois meses em direção ao pôr-do-sol na busca de terras novas. Era um barco de casco em “v”, seguro, veloz e de grande mobilidade, característica que lhe permitia navegar ventos contrários. O capitão era homem de poucas palavras e produzia, nos companheiros de viagem, sentimentos alternados de admiração e pavor. Era considerado um louco pela tripulação que temia tanto olhar em seus olhos quanto desobedecer a suas ordens. Os dois jovens, Inês e Miguel, veneravam-no mais que a qualquer outro mortal. O que irmanava os viajantes era àquela altura da viagem estarem todos esgotados; situação agravada pelo racionamento de comida e água.

Inês navegava com o capitão pela primeira vez e àquela manhã, quando acordou, temeu mais uma vez pelas suas vidas.
– Poderosa deusa! Que tempo é este que nunca vi? – Resmungou para si mesma.
O dia amanhecera com uma cor quase impossível de descrever. Nuvens indomáveis corriam de um extermo a outro no céu acima de sua cabeça. O nascente azulado sem um fiapo branco sequer e o poente encoberto de nuvens roxas que se enrolavam uma sobre as outras como se fossem meadas de linha. Aos olhos de Inês, parecia o caos do início ou do fim dos tempos.
– Não desabeis vossa fúria sobre nós. Recuai! Não jogueis sem piedade esse barco no profundo mar. Livrai-nos dos monstros que habitam o insondável abismo! – Pedia a jovem Inês, erguendo as mãos para as nuvens e as baixando para o mar repetidamente numa dança singular.
Inês confiava no capitão, conhecia-o desde menina, do tempo em que sua mãe ainda era viva. Acreditava nele. Admirava-o. Era um homem muito sábio. Sempre foi navegador, conhecedor dos caminhos do mar e das estrelas do céu. Mas agora navegavam um mar desconhecido e as estrelas ainda não tinha função nem nome.
– Os elementos, nestes confins, talvez desconheçam o homem e suas minúsculas naus. Por que fui tirar meus pés da terra firme? Ah! Sábia criatura, para não seres queimada numa fogueira como tua pobre mãe. Lembra-te! Esses ainda são tempos governados pela santa Igreja – respondeu para si mesma, abraçando o corpo estremecido por um calafrio.
A fixação de Inês pelo poente, a paixão pelo desconhecido fora a única coisa que herdara da mãe. Ela fora uma mulher bela e sábia, conhecedora do poder das fases da lua sobre as marés e das estrelas sobre o destino dos humanos. O saber de Inês era outro: o poder oculto das plantas.
Sabia de plantas com folhas e galhos escuros, sem flores, com frutos negros, de forma rara e estranha, com crescimento tão lento quanto a eternidade, que tinham o poder de entorpecer os sentidos. Sabia de plantas que existiam somente perto da água doce, com folhas frias e enormes, cujo leite sem sabor excitava mil vezes o apetite sexual. Sabia o poder de muitas mais. Esse seu saber, como o de sua mãe, também era perigoso aos olhos dos que tinham poder.
Isso tudo pensava Inês, em sua limitada cabine, enquanto macerava folhas secas de mirra com seus dedos delicados de unhas curtas e rosadas em um pote de porcelana. Quando se tornaram pó, arrumou um montículo numa pequena concha de madrepérola e, virando-se para o poente, ateou fogo e invocou quando um fio de fumaça subiu serpenteando em espiral:
– Poderoso e imortal Zéfiro! Bondosa força do vento Oeste! Socorrei estes míseros mortais que ousaram ter poder para navegar sob as estrelas no desconhecido mar. Conduzi essa nau pelos caminhos do mar ao encontro da terra firme. Deusa poderosa! Agradeço a vós, sapientíssima e amorosa, pelas palavras que saíram da minha boca.

Alheio a reza e ao ritual de Inês, Miguel, o cristão novo, amigo e ajudante do capitão, também estava incomodado com a cor do céu naquela manhã.
– Eu acredito no capitão, ele é o mais sábio dos homens. É um homem poderoso. Os caminhos do mar desconhecido se abrem generosamente para ele. Logo, ele é capaz de navegar o mar sem fim. Tenho fé! Nosso Senhor, Deus-Todo-Poderoso! Ele chegará aonde deseja ir; – afirmava para si mesmo, completando – embora, o tempo não esteja do seu lado.
As palavras escapavam de sua boca como se fosse uma prece. Miguel era alto, com a pele clara, os cabelos e os olhos negros. Sob o lábio leporino quase imperceptível, usava um bigode. Vivia para perscrutar o horizonte infinito durante o dia, e as estrelas durante a noite. Era minucioso nos seus cálculos e de total confiança do capitão.
– Meu Deus! Pelos meus cálculos, já navegamos toda a água estimada pelos estudiosos, já ultrapassamos inúmeras vezes a linha do horizonte. E até agora nada, nenhum sinal de terra. Meus olhos cansados avistam caudas de dragão seguindo a nau. Poderiam avistar, ao menos, uma ave qualquer no céu. Essas sim seriam um bom presságio, mas nada, nada, a não ser o desconhecido insondável, a sombra dos mitos e este tempo que não é nosso. Tempo de outros tempos, outras eras, outros mundos – falava gesticulando em volta da mesa com mapas abertos sobre ela e, sobre os mapas, bússolas, astrolábios e quadrantes.
Desde menino, Miguel acompanhava o capitão em suas viagens, navegara com ele pelos mares quentes da África e pelos mares gelados do Norte. A sua educação na arte da navegação fora destinada ao capitão pelo próprio pai. Ele era um mercantilista judeu que acumulara grande fortuna, em pouco tempo, graças a seus empreendimentos na navegação. O pai de Miguel pretendia fazer dele capitão de sua própria nau e, talvez, de sua própria frota. Miguel considerava o pai um homem de visão aguçada para a época.
– Meu Deus, Pai Todo Poderoso, Senhor do Universo, céus e terras estão sob vosso domínio, ajudai-nos, tende piedade de nós – pedia enquanto escrevia em seu diário:
"Estamos a sessenta o oito dias no mar. A última vez que vimos terra foram as ilhas onde abastecemos de frutas, água e caça há quarenta e oito dias. Depois não encontramos mais terra. Enfrentamos todo tipo de tempo nesses meses de viagem: tempestade, bonança, calmaria, mas nunca um tempo assim. O céu está em revolta e as nuvens estão bem próximas, creio que, em breve, desabarão sobre nós. O mar está calmo e liso como um rio. Isso não o impedirá de nos esmagar como seres ínfimos que somos à mercê de seus humores. O capitão não dá mostras de preocupação, mandou baixar as velas, deixando somente a da popa e deu ordens para contemporizar e esperar a tempestade."

Miguel fechou o diário e saiu ao encontro de Inês, alcançando-a no instante em que soprava cinzas para o vento. Na proa, os dois jovens miraram o poente esperando algum sinal. À frente deles, as nuvens eram como um paredão roxo quase negro. Então, suas narinas dilataram, e ambos sentiram uma leve mudança no cheiro salgado de mar. O vento mudara trazendo um perfume dulcíssimo, tão agradável que deu aos dois um prazer imenso em senti-lo.
– Estarei tendo novas alucinações? – Perguntou-se Miguel, mal mexendo os lábios, tentando menosprezar a secreta alegria que tantas vezes antes provara ao sentir o cheiro de terra a léguas de distância.

Um troar de trovões anunciou a chuva que desabou copiosa sobre o mar, os pingos eram grossos, pesados e quentes. Miguel e Inês voltaram aos seus lugares. O mar liso encrespou levantando vagas imensas que batiam no lenho com estrondo de mil tambores. A tripulação lutou para proteger o barco e a vela da reviravolta inesperada do vento. Choveu durante horas ininterruptas. Parou no fim da tarde, quando o sol ainda estava a um palmo do horizonte. Um bando de aves brancas, nunca vistas, retornando para terra, veio dar à nau. Era o segundo sinal de terra, em quarenta e oito dias, navegando sempre em direção ao poente. Na proa, Inês e Miguel sorriram igualmente agradecidos e crédulos.

Zélia Viana Paim
Reescrito, publicado, em 2004, no Jornal Letras Santiaguenses.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Uma História Surreal

Estes fatos que passo a contar aconteceram antes que a região fosse invadida por uma fauna humana constituída de esotéricos e cientistas. Foi no tempo em que a impiedosa seca assolou a região; as manhãs e as noites eram frias, e um vento morno que principiava ao meio dia, enrolava as folhas das árvores, fazendo com que caíssem ainda verdes e forrassem o solo, deixando que os galhos nus, como dedos sem carne, apontassem para todos os lados.
– O vento da miséria! – reconheciam todos.
Éramos todos conhecedores dos caprichos do tempo, morávamos no corredor da seca, ao norte do continente. Estávamos acostumados com a seca nos longos meses de estio; entretanto, uma seca inclemente igual aquela nunca tínhamos visto, nem mesmo os cidadãos centenários. O sol jamais repousava no firmamento hostil e crestava as peles banhadas de suor. O trabalho arrastava-se pela região em morna lentidão.
Todos sofriam com fortes dores de cabeça e de garganta por causa do sol que não dava tréguas. Os açudes da região e, até mesmo, as lagoas, que sempre havia resistido à estiagem, secaram pela primeira vez. No grande rio exaurido, ainda restava um filete de água escorrendo lento no leito rachado.
Então, nesse clima de secura extrema, nossa pequena cidade tornou-se palco de fatos estranhos. Dizem que tudo começou, inclusive a seca, com a construção da estrada, desde então, precipitaram-se desencadeando na população um misto de assombro, curiosidade e redobrada fé.
O novo traçado da estrada que ligava as duas únicas cidades da região exigira a detonação de cerros, o corte de árvores e a drenagem de banhados e sangas. O traçado da estrada velha contornava esses obstáculos; embora, não passasse de um caminho largo aberto por braços fortes e pequenos tratores.
Os moradores diziam que o traçado novo deveria estar há anos no papel, porque, nos mapas rodoviários da região, a estrada constava como sendo asfaltada. Fato que causava transtorno em viajantes desavisados. Durante anos, os moradores ouviram dizer que as verbas se sucediam para a construção, mas desapareciam nos labirintos da burocracia.
O certo foi que, numa fatídica manhã, um cerro precisou ser explodido, justamente aquele da gruta da Santinha. Era uma santa antiga, de cujo nome ninguém lembrava mais. Os moradores mais velhos e crédulos visitavam-na regularmente, acendendo velas em agradecimento às mesmas graças recebidas. Ao ser mandada pelos ares, com o cerro de pedras no qual fora caprichosamente assentada, há tantos séculos que ninguém sabia ao certo, a gruta da Santinha caiu no solo intacta sem uma rachadura e com as velas ainda acesas.
Então, as peregrinações começaram; primeiro, à noite, depois, durante o dia. As pessoas comuns, por curiosidade; os antigos devotos, por fé renovada e os novos, por crença recente. Os peregrinos acenderam velas aos pés da Santinha, ao redor da gruta, pelos caminhos percorridos até ela. A luminosidade era tamanha que podia ser avistada da cidade, do campo, dos lugares longínquos, do espaço pelos satélites e destes pelo mundo.
– Os acontecimentos são estranhos, mas talvez possam ser detidos pela mão do homem – decretou um dos mais novos vereadores da cidade.
Os caminhos foram patrulhados por voluntários, e os peregrinos, constrangidos, menos Valentina, a beata.
– Ninguém pode conter os desígnios do Pai! Olhem os sinais! Olhem para o céu! Vejam como as estrelas estão brilhantes! Vejam com seus próprios olhos! – gritava Valentina, a beata que viera com a primeira leva de peregrinos, para um público cada vez maior de lentos e sedentos fiéis.
Os últimos acontecimentos estranhos se deram no mesmo dia em que esotéricos e cientistas invadiram a cidade.
O dia nasceu com uma nuvem formada por bandos de urubus pairando sobre a cidade, como se fosse um redemoinho negro. Homens armados com armas de fogo dos mais diversos calibres atiraram contra o olho do redemoinho. As inúteis saraivadas de balas, no entanto, não fizeram mossa no impenetrável. Sem sucesso, apelaram para flechas incendiárias, causando pequenos incêndios, por causa das folhas secas.
Neste mesmo dia de ações inúteis, Venerável Fortuna, o vereador mais antigo e respeitado, reeleito por décadas seguidas, fez mais um discurso inflamado contra todos. Antes de finalizar sua fala, um ataque de tosse acometeu o velho vereador que cuspiu folhas verdes e pétalas amarelas.
Aos olhos de todos os incrédulos presentes, adversários e companheiros de tribuna, foi transmutando aos poucos no que parecia ser um pé de fedegoso.
– Agora  sim, ele é um pé de fedegoso em flor! – exclamou o agrônomo Juarez, acrescentando: – Senna macranthera é o nome científico da espécie – para o microfone que uma mão anônima lhe estendia.
Os galhos da árvore recém formada do homem subiram para os céus, alcançando o bando de aves negras. Ao toque dos galhos mais altos, o impenetrável redemoinho desfez-se numa intensa luz violeta, cegando os presentes. Quando puderam abrir os olhos novamente, libélulas azuis voavam pelas flores amarelas da árvore, e gatos, às dezenas, pelo chão, rondavam as libélulas.
Só Valentina, a beata, sorria.
– Bem-feito! Eu avisei! – falou, abrindo a sombrinha estampada com flores amarelas no momento em que as primeiras libélulas começaram a cair, mudando em velas acesas ao tocarem o solo, para congraçamento dos homens e desapontamento dos gatos...

Zélia Viana Paim